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    Leão Serva

    Diante da seca, faraós aumentam impostos

    29/12/2014 03h00

    Em um reino distante, uma geração de faraós competia para construir obras maiores e mais visíveis, que pudessem preservar para sempre a memória de seus governos. Na capital, o Vizir Novo ansiava por dinheiro para construir o Grande Arco na entrada da cidade.

    Para superar o impacto de tal monumento e tornar ainda mais evidente a sua própria imagem, o Governador Provincial projetava túneis e estradas circulares onde coubessem num mesmo dia todos os viajantes do reino, um parado atrás do outro, para admirar o "estado da arte" da engenharia faraônica.

    Maior de todas, a rainha planejava derrubar florestas e em seu lugar instalar lagos imensos. De quebra, construiria no fim do mundo conhecido grandes acampamentos para empacotar trabalhadores do reino, longe do conforto das praças e palácios dos centros urbanos. "Minhas obras são minha vida", repetia.

    Um misto de pavor e cólera possuiu os três quando o Tesoureiro real (na falta de nome melhor o chamei de José) avisou que uma grande seca abateria o reino por alguns anos e espalharia pobreza e falta de alimentos. Que era preciso parar de gastar, economizar para atravessar com vida aquele período.

    "É inadmissível que eu não possa construir meu Arco", disse o Vizir; "Eu exijo meus túneis" falou o Provincial; "Tenho que acelerar o crescimento", alegou a Faraona.

    Primeiro, José fez ouvidos moucos. Depois, quando ameaçaram abatê-lo em público como tinha ocorrido ao ministro Mantega do distante Brasil, José se apressou a tomar providências: "Isso não dá, eu jamais suportaria tal humilhação pública". Assim, apresentou logo a solução para atravessar o período de crise: "Vamos aumentar impostos. No primeiro momento, os ricos do reino vão ser pegos de surpresa e o tesouro ficará cheio. No segundo momento, eles atravessarão o deserto e levarão seu dinheiro para outros reinos. Mas a essa altura, restarão os pobres e deles tiraremos o sangue e o couro. Cada vez que um trabalhador for para sua casa sua vida, no fim do mundo, uma passagem na biga lotada custará como três bigas e meia. Vamos aumentar também o preço das velas: à noite, ao acender o fogo, se lembrarão de nós".

    "Mas e se todos ficarem ainda mais pobres e não lhes sobrar dinheiro para comer?" perguntou a rainha. "Então distribuiremos bolsas mensais com comida e daremos descontos nas bigas. Os que tiverem sobrado agradecerão a imensa bondade do governo e o seu reino não terá fim."

    Por algum tempo tiveram sucesso. O Vizir construiu pontes sobre os rios para que no futuro todos pudessem contemplar o seu Arco; o Provincial fez estradas tão grandes que atraiam todos os reinóis que se empacotavam em admiração. A Rainha extinguiu as florestas e fez do deserto um oceano.

    Os problemas começaram quando o mar se tornou deserto; os ricos do reino foram para Mianmar e só a pobreza sobreviveu no Egito. Descoberta milênios depois, coberta de areia, a obra do Vizir passou a ser chamada "O Arco do Passado". O Provincial fracassou ao tentar conquistar o trono; hoje suas estradas unem dunas desertas. E Faraona se transformou em uma estátua de sal ao olhar para trás e ver que sob seu governo, o reino foi coberto por montanhas de areia.

    leão serva

    Ex-secretário de Redação da Folha, jornalista, coautor de 'Como Viver em SP sem Carro', faz pesquisas no Warburg Institute, em Londres, com o apoio da Capes. Escreve às segundas.

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