• Colunistas

    Monday, 20-May-2024 11:49:05 -03
    Leão Serva

    CQD: Marginal do Tietê prova a lei do "trânsito induzido"

    06/04/2015 02h00

    Teve pouco impacto nos meios de comunicação uma importantíssima notícia sobre o trânsito na cidade: a informação de que o congestionamento na Marginal do Tietê quase dobrou desde a ampliação da avenida, inaugurada em 2010. Trata-se de uma informação fundamental para que a opinião pública, local e mesmo nacional, entenda o funcionamento do trânsito e a relação perversa que as grandes obras viárias têm com o fluxo de automóveis, inversa do que prometem os políticos e construtores.

    Estudos consolidados da engenharia de tráfego na Europa e nos Estados Unidos ensinam que a ampliação das vias para trânsito de carros particulares aumenta os congestionamentos, depois de uma rápida melhoria de fluidez, que serve só para iludir. Dediquei uma coluna ao tema na época das inaugurações de obras viárias em todo o país sob a alegação de que melhorariam a mobilidade para a Copa-2014.

    Os estudos técnicos desenvolvidos a partir da criação de grandes soluções viárias no chamado "primeiro mundo", especialmente em Londres, mostram que "a oferta de maior capacidade em vias resulta em ainda maior volume de tráfego" e o conjunto dos estudos revela que nas vias adicionadas o "trânsito cresce 10% no curto prazo e 20% em prazo mais longo", conforme o livro "Empirical Evidence on Induced Traffic (evidências empíricas do trânsito induzido). Ou seja, podemos esperar ainda mais congestionamento na Marginal Tietê nos próximos anos (até atingir 20% a mais do que tinha antes de 2010).

    A primeira reação diante desses dados é pensar que a avenida atraiu carros que estavam em outras ruas. Não. Os estudos mostram que aumenta o trânsito na nova via mas não diminui nas anteriores. Outro argumento é o aumento da frota. Falso também: o aumento do congestionamento em uma nova avenida é sempre maior do que o crescimento da frota (por exemplo, a paulistana cresceu mas nada perto de 80% em cinco anos). O que ocorre é que automóveis que ficaram em casa são postos a circular diante da notícia da melhora (efêmera, inicial) da fluidez.

    Esses estudos tiveram grande impacto no establishment de obras públicas (governos e urbanistas) e finalmente na opinião pública na segunda metade do século 20. Mas não chegaram ao Brasil. Uma pesquisa no serviço "Google Acadêmico", que relaciona estudos científicos, traz diversos trabalhos em língua inglesa sobre o tema "induced traffic". Nada em português para "trânsito induzido" ou tradução semelhante.

    Os engenheiros de trânsito conhecem bem o fenômeno. Aparentemente não realizaram muitos trabalhos acadêmicos sobre o assunto. O decano Roberto Scaringella (1940-2013) costumava saudar com ironia a inauguração de uma nova avenida em São Paulo iria "levar o congestionamento mais rapidamente até o próximo congestionamento". Mas também ele foi vencido pelo espírito construtor dos sucessivos prefeitos obreiros com quem conviveu a partir de 1976, quando criou a CET.

    Se o aumento das vias de trânsito aumenta o congestionamento, a sua redução diminui engarrafamentos. Por isso Paris, Londres e Nova York estão fechando aos carros cerca de 30km de ruas a cada ano. Por essa mesma razão é tão importante a implantação das faixas de ônibus e as ciclovias que restringem as pistas destinadas aos carros na cidade de São Paulo. Elas congestionam o transito dos carros particulares, atrapalham seus motoristas, reduzem a oferta de estacionamento, irritam portanto a vida dos que optam por ir de carro para as áreas de maior densidade. Forçam os "carro-dependentes" a refletir sobre a opção pelo transporte coletivo. Infernizados, muitos motoristas deixam de sair de carro durante a semana.

    Há uma frase típica da hipocrisia de muitos usuários intensivos de automóvel que diz: "Se o transporte público fosse bom, eu usaria". Ela ignora o alto índice de satisfação manifestado por aqueles que fizeram a opção, como mostram as pesquisas feitas para o guia "Como Viver em São Paulo Sem Carro. Ignora também que as cidades com melhor transporte público no mundo também têm congestionamento. Ou seja: quem é dependente do automóvel não vai largar o vício se não for forçado. Por isso o respeitado urbanista Jaime Lerner diz que o "carro é o cigarro do século 21".

    São raras as oportunidades em que leigos podem entender com tanta clareza um conceito científico. Daí a importância da notícia sobre o crescimento do trânsito na Marginal do Tietê. Se analisarmos uma a uma, o mesmo ocorreu antes com todas as obras viárias da cidade. A Marginal do Tietê até demorou mais para realizar a curva clássica observada nas obras viárias estudadas na Inglaterra porque foi uma de várias obras feitas pelo governo do Estado e pela Prefeitura naquele ano (o que incluiu o Rodoanel Sul, a Avenida Bandeirantes e uma série de medidas de restrição à circulação de veículos pesados, caminhões e ônibus fretados). Não fosse essa lista de medidas, em dois anos o congestionamento teria superado os índices de 2010.

    Agora que ficou mais claro entender a falsidade daqueles que prometem resolver o trânsito da cidade com grandes obras, podemos começar a pensar porque essa sabedoria não chegou ao Brasil. Será porque as grandes empreiteiras que constroem as avenidas são os maiores financiadores de campanhas eleitorais?

    leão serva

    Ex-secretário de Redação da Folha, jornalista, coautor de 'Como Viver em SP sem Carro', faz pesquisas no Warburg Institute, em Londres, com o apoio da Capes. Escreve às segundas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024