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    Leão Serva

    Diga "precarização" e eu te direi quem és

    20/04/2015 02h00

    Quem disse que só tem robô nas mídias sociais? Também no jornalismo certos raciocínios idênticos se repetem em diferentes autores: funcionam como os autômatos das redes de computadores. O exemplo mais recente é o jogral contrário à lei que formaliza a terceirização de funções nas empresas. Diga "precarização" e eu lhe direi quem és.

    CUT, UNE e outras entidades viram nesse debate a possibilidade de reativar sua ligação com as ruas, reduzindo a imagem de peleguismo que resultou do apoio incondicional ao governo que se liquefaz.

    Para fazer isso, dispararam a todos os ventos a senha que deve ser repetida por quem se dispõe a participar do "buzz". Mas afinal, o que é "precarização"? É um neologismo (surgiu há menos de 20 anos) usado para dar tom técnico e formal a argumentos trabalhistas simples.

    Este é o resumo da ideia: a nova lei da terceirização vai provocar a piora das condições do emprego de todos os trabalhadores do Brasil. Por isso, esses trabalhadores devem se opor à lei defendida pelos empresários vorazes e seus representantes políticos no Congresso. Quem a apoia a nova lei trai o trabalhador.

    Tudo parece fazer sentido até que alguém se pergunta: mas os terceirizados não são "trabalhadores"? Sim, são. E eles são muitos? Sim, entre as empresas que prestam serviços terceirizados estão alguns dos principais empregadores do país hoje, maiores do que indústrias que há 20 ou 30 anos ocupavam esse posto. Hoje, o setor de serviços (onde se concentra a maioria das atividades terceirizadas) é responsável por mais da metade do PIB brasileiro.

    E esses profissionais têm sindicatos que os defendem? Sim, inclusive a segunda maior central brasileira, a Força Sindical, que concentra entre seus filiados muitos sindicatos de trabalhadores do setor terciário e empresas dedicadas à terceirização.

    Sindicatos de trabalhadores são necessariamente conservadores, contrários a mudanças nos sistemas produtivos que possam alterar o modo de vida de seus membros. Seu paradigma é o dos trabalhadores destruindo as primeiras máquinas que dispensavam trabalhadores, ao tempo da Revolução Industrial.

    No entanto, a terceirização no Brasil já avançou muito no país e já não é possível atacá-la como uma novidade. Defensores e críticos à nova lei em tramitação no Congresso apontam que os terceirizados já são entre 13 milhões e 15 milhões de pessoas. Some aí seus cônjuges e filhos e temos algo como 40 milhões de brasileiros dependentes de contratos de trabalho terceirizados.

    Já desde os anos 1980, estudiosos de economia e trabalho vêm apontando para o que chamam de "o fim do emprego": redução das vagas em fábricas convencionais, pulverização das oportunidades de trabalho e ampliação do empreendedorismo. As demissões constantes na indústria brasileira têm sido compensadas pelo crescimento do setor de serviços e das pequenas e microempresas.

    Apesar desse quadro já ter quase 40 anos, no entanto, a legislação brasileira segue como se ainda vivêssemos no tempo de Henry Ford e das indústrias como carro chefe da economia, quando o governo criou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

    Ao deixar a terceirização sem uma lei apropriada, os legisladores terceirizaram para a Justiça improvisar um marco jurídico. E ela o fez com uma interpretação precária: a de que as empresas só podem repassar para outras (terceiras) as atividades "meio", aquelas que não são diretamente ligadas a sua principal finalidade.

    Da mesma forma, essa interpretação pode parecer ter sentido até que uma pessoa se pergunta: e como definir a finalidade de uma empresa? É quase impossível, pouquíssimas são as companhias com nível de especialização que permita definir com clareza sua finalidade (ironicamente, estas são exatamente as terceirizadoras). Além disso, os fins mudam ao sabor de tendências de mercado, o que deixa imensa margem de subjetividade. Um juiz pode considerar "fim" um departamento que outro considera "meio".

    Pense no atendimento telefônico de seu banco: a pessoa que realiza transferências bancárias do outro lado da linha pode ser terceirizada? Não, dizem os oponentes; sim, dizem os defensores.

    Os "call centers" estão entre os maiores empregadores do país, são quase sempre terceirizadores de serviços, têm grande especialização, uso intensivo de tecnologia e técnicas de controle como nenhuma empresa consegue ter quando essa atividade é internalizada entre outras várias.

    A ausência de uma lei clara regulamentando sua atividade mantém "precarizada" a segurança jurídica de todos os "call centers" que têm como atividade "fim" a terceirização de tarefas.

    Essa dificuldade de identificação não ocorre apenas no setor de serviços. Pense uma empresa como a GE, uma das mais antigas e poderosas do planeta. Ao longo de sua história, em diferentes tempos e lugares, ela pode ser ou ter sido produtora de energia ou banco, indústria de bens duráveis ou varejista. Sua atividade fim, como diz a ópera "Rigoletto", "muta d'accento e di pensiero" (muda de cadeira e ideia) conforme as oportunidades de lucro.

    Pense uma empresa moderna como a Apple, a mais valiosa do planeta. Qual sua atividade fim? A produção de aparelhos eletrônicos, certo? Mas ela terceiriza integralmente para outras indústrias a produção física de seus gadgets. Para uma companhia que se notabiliza pela criação constante de inovações tecnológicas, não faz sentido gastar tempo e esforço com a realização desses projetos. Ela se concentra na concepção do produto, onde está o maior valor agregado, e na sua venda, onde realiza a mais-valia. A atividade industrial, que poderia ser considerada "fim" se tornou um "meio" entre as duas atividades que controla rigidamente. Se os tempos mudarem, ela alterará essa prática.

    O Brasil ganharia muito com o florescimento aqui de empresas dinâmicas como a Apple, se instalando ou terceirizando a produção para fábricas locais, em vez de escolherem a China. Mas elas não o fazem enquanto sindicatos e políticos reacionários seguem defendendo uma legislação arcaica, que não reflete o desenvolvimento das forças produtivas, leis que precarizam a economia brasileira em nome da defesa do "emprego", que logo será tema de estudos de Arqueologia e História.

    leão serva

    Ex-secretário de Redação da Folha, jornalista, coautor de 'Como Viver em SP sem Carro', faz pesquisas no Warburg Institute, em Londres, com o apoio da Capes. Escreve às segundas.

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