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    Leão Serva

    Plantar florestas para colher água

    27/04/2015 02h00

    O documentário "O Sal da Terra", sobre Sebastião Salgado, é um merecido sucesso de crítica e de público. Mas entre tantas belíssimas obras suas, o principal legado que Salgado decidiu deixar ao país tem ficado esquecido na ampla cobertura sobre o lançamento do filme dirigido por Win Wenders e Juliano Salgado (filho do fotógrafo). Quem precisa de água fresca tem que ter florestas, o que o artista brasileiro ensina com a experiência da recuperação da fazenda de sua infância.

    Essa mensagem simples é ainda mais importante diante da coincidência do lançamento do filme numa época em que vários Estados do Brasil vivem falta sistêmica de água. Salgado não inventou a receita: apenas lembra o que o Brasil já soube no tempo do Império, mas esqueceu.

    Em meados do século 19, quando Dom Pedro 2º era imperador do Brasil, o Rio, então capital do país, viveu uma "crise hídrica". O governo logo associou o problema ao desflorestamento das áreas de mananciais em torno da cidade por fazendas de café, ou como chamamos hoje, o "agronegócio".

    Por isso, decidiu-se recuperar a floresta na área da Tijuca com o plantio de árvores nativas. Em cerca de 15 anos foram plantadas 100 mil mudas (10% do que Salgado e sua mulher Lélia plantaram em sua fazenda). A água voltou a correr para as torneiras dos cariocas e nasceu ali a maior floresta urbana do mundo, um ponto turístico que garante a perpetuidade do adjetivo "maravilhosa" à antiga capital.

    É incrível que tendo esse exemplo embaixo do nariz do país por mais de 100 anos, ele possa ter sido esquecido pelos brasileiros. Ou nem todos: Lélia Salgado lembrava, e quando viu que a terra da infância do marido havia secado, que a cachoeira onde ele brincava com as irmãs não existia mais, propôs que plantassem novamente a floresta.

    Como conta o filme, das 400 espécies normais de uma mata atlântica, eles inicialmente dispunham de cem. As árvores levam cerca de 20 anos para atingir o tamanho necessário para a floresta funcionar plenamente como fábrica e armazém de água. Mas esse momento ainda nem chegou e já há cerca de cem olhos d'água brotando de novo. Até um lago ressurgiu naturalmente.

    Em uma entrevista que me concedeu, Salgado narrou emocionado que um funcionário da fazenda viu o exato momento em que um jacaré todo sujo de terra, com jeito de quem caminhara por muito tempo, apareceu e mergulhou na água fresca do lago.

    O regime de chuvas já está voltando ao normal na terra do fotógrafo convertido em criador de florestas. Exatamente como aconteceu na Tijuca 150 anos atrás.

    O Sudeste brasileiro já vive o mês de abril do terceiro ano de estresse hídrico. Nem os Estados e nem os municípios que sofrem a falta de água iniciaram projetos importantes de reflorestamento em seus mananciais. Ao contrário, em São Paulo existem até propostas de reduzir parques para construir prédios populares (onde vai faltar água).

    Em vez das grandes e caras obras de reversão de bacias, que fazem alegria de grandes empreiteiras, mas exportam o problema da falta de água para regiões distantes, o replantio de florestas é uma forma barata e eficiente de fazer os reservatórios subirem de novo.

    Basta seguir o ensinamento do Imperador, renovado por Sebastião Salgado: é preciso plantar florestas para colher água.

    leão serva

    Ex-secretário de Redação da Folha, jornalista, coautor de 'Como Viver em SP sem Carro', faz pesquisas no Warburg Institute, em Londres, com o apoio da Capes. Escreve às segundas.

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