• Colunistas

    Monday, 20-May-2024 17:15:11 -03
    Leão Serva

    Terrorismo: a imprensa nos enganou

    16/11/2015 07h52

    Desde o início, em 2010, a imprensa saudou as rebeliões que ficaram conhecidas sob o genérico "Primavera Árabe" como se fossem levantes de grupos democratas contra ditaduras. Poucos jornais estrangeiros destacaram a multiplicidade de interesses envolvidos naquelas manifestações que ao longo dos tempos foram se tornando mais violentas. Poucos alertaram para a confusão étnica e religiosa que a queda dos regimes autoritários poderia levantar.

    A primeira vítima da guerra é a verdade, isso já estamos cansados de saber desde o final da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), quando a frase foi atribuída a um senador norte-americano chamado Hiram Johnson.

    Mas a imprensa se comporta sempre como se a verdade fosse vitimada apenas do "outro lado", como se os inimigos mentissem e os aliados fossem honestos. Os jornais cobrem as guerras com o olhar da diplomacia de seus países: os americanos narram sob a ótica de seu governo, franceses, ingleses e alemães também. Russos, chineses e japoneses também.

    Embora Brasília tenha muitas posições divergentes dos países da Otan (aliança militar ocidental), os jornais brasileiros, frequentemente se alinham com os jornais daqueles países. Não só porque são dependentes de agências de notícias baseadas em Washington ou Londres. Mas também os seus repórteres sintonizam a mesma frequência.

    Foi assim que o retrato da rebelião no Egito nem de perto sugeria que os "democratas" anti-Mubarak viriam a perseguir cristãos; ou que a queda do ditador poderia significar a eleição democrática de um governo islâmico antidemocrático; ou que a queda de Muamar Kadafi fosse resultar em um caos de estilo afegão. Nada jamais sugeriu que a alternativa ao regime de partido único de Bashar al-Assad seja uma miríade de partidos, seitas e etnias, todas com múltiplos antagonismos. Perto da Síria, a multiplicidade balcânica é uma história de ninar.

    O mundo é muito complicado e os jornais não são bons ambientes para as histórias multifacetadas: o bom enredo jornalístico é aquele criado pelo terrorismo, que gera unanimidades, por antagonismos como os clássicos futebolísticos Fla x Flu. Na narrativa de imprensa não faz sentido Israel ser uma democracia no meio do Oriente Médio, com dezenas de partidos, representação árabe no Parlamento e decisões da Justiça que contradizem o governo. Não faz sentido supor que Bashar al-Assad possa estar certo ao dizer que depois dele será o caos. Se ele o disse, é mentira.

    Os países do Ocidente estão pagando caro pelo alinhamento à ilusão criada pela estratégia americana nascida das cinzas das Torres Gêmeas: a de que era necessário intervir no Oriente Médio para criar democracias ao estilo americano. O primeiro laboratório, Iraque, é hoje muito mais instável do que antes, em vez de exportar petróleo, passou a produtor de conflitos étnicos e terroristas. E os aliados dos EUA na Europa, por mais que sejam meros coadjuvantes, vêm, um a um, sofrendo ataques terroristas que suas populações, naturalmente, não estão preparadas para assistir.

    A reação do governo francês à carnificina provocada pelos extremistas árabes muçulmanos em Paris será o estopim de uma agravamento da grande onda de choque no Oriente Médio, que já abala a Europa.

    Nos próximos meses devemos assistir ao início de uma nova fase da Terceira Guerra Mundial, que já estava em curso mas que passará para a história como tendo começado na queda das Torres Gêmeas. Mais países vão atacar áreas do Oriente Médio e sofrerão ataques em seus territórios. O Afeganistão deve voltar a ferver muito em breve, assim como a Turquia poderá ser centrifugada e forçada a intervir em torno de sua fronteira (não com a mesma estratégia e nem do mesmo jeito que seus aliados ocidentais, o que poderá pô-la nos braços de outro bloco). Quando a Turquia se abala, a Grécia sofre intoxicações nacionalistas. Quando a Síria explode, os cacos caem no Líbano...

    Há muito o relógio da história não avançava seus ponteiros tão rapidamente. Qualquer previsão soa absurda nesses momentos. A única certeza é de que a verdade já morreu e muita violência deverá ocorrer nos próximos meses. 2016, que já não cheirava bem, está com cara de 1936.

    leão serva

    Ex-secretário de Redação da Folha, jornalista, coautor de 'Como Viver em SP sem Carro', faz pesquisas no Warburg Institute, em Londres, com o apoio da Capes. Escreve às segundas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024