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    Leão Serva

    Privatizar os cemitérios para proteger os mortos

    31/10/2016 02h00

    Dário Oliveira/Codigo19/Folhapress
    SÃO PAULO, SP, 19.06.2015: QUEDA-ARVORE-SP - Árvore de grande porte cai, derruba parte do muro do cemitério da Consolação e atinge carro nesta tarde de sexta-feira (19) na rua Cel. José Eusébio, após chuvas. (Foto: Dário Oliveira/Codigo19/Folhapress) *** PARCEIRO FOLHAPRESS - FOTO COM CUSTO EXTRA E CRÉDITOS OBRIGATÓRIOS ***
    Árvore de grande porte cai e derruba parte do muro do cemitério da Consolação

    Nos próximos dois dias, milhões de paulistanos vão visitar os túmulos de seus familiares mortos. Muitos só então vão se dar conta de uma grave ineficiência da administração do prefeito Fernando Haddad, que aumentou a degradação dos cemitérios públicos da cidade. E talvez pensem na privatização dos cemitérios, mencionada por João Dória durante a campanha eleitoral, como uma forma de proteger os jazigos de suas famílias dos descuidos do poder público.

    O caso mais chocante creio ser o do cemitério do Araçá, onde até hoje não foi reparada a queda de um muro, na temporada de chuvas passada, que destruiu vários túmulos e levou na enxurrada alguns restos mortais. No local, foi fixado um tapume capenga para separar os mortos da rua. Já o trecho de muro que caiu no cemitério da Consolação foi substituído por uma grade que destoa de todo o resto.

    Os cemitérios públicos são uma entidade arcaica e pouco republicana, tratada como tabu por cidadãos e poder público, exatamente por envolver mortos. Começam por sugar fatias do orçamento municipal para prestar um serviço que não realizam, a limpeza e conservação de túmulos e jardins. Isso incentiva a informalidade que, em outros setores, se chama corrupção: funcionários públicos cobram ou deixam cobrar "por fora" para cuidar de jazigos. Em outras palavras, a instituição pública não presta serviços devidos e informalmente deixa existir uma taxa correspondente ao condomínio cobrado pelos cemitérios privados para a prestação eficiente de serviços.

    Além disso, os cemitérios públicos funcionam como Robin Hood às avessas: são pagos com o imposto de todos os paulistanos (inclusive os mais pobres) para abrigar amplos túmulos de ricos: passear pelos cemitérios da Consolação, Araçá ou São Paulo é uma forma de conhecer árvores genealógicas de endinheirados. Enquanto isso, pobres, classe média e famílias que migraram para São Paulo em décadas mais recentes, buscam os cemitérios privados.

    Há ainda um resquício incômodo de discriminação religiosa: eles deveriam ser "de todos", mas desde sua criação, no tempo do Império, privilegiam católicos e excluem protestantes e judeus, pois são do tempo em que a Igreja Católica se confundia com o Estado.

    Isso gerou a primeira exposição da ineficiência do poder público: o encrave protestante no cemitério da Consolação é limpo e bem cuidado por uma associação particular, a mesma que gere o cemitério do Redemptor, na av. Dr. Arnaldo, bem em frente ao degradado Araçá. O contraste funciona como uma propaganda do modelo privado.

    Quando prefeito (1983-85) e depois governador (1995-2001), Mario Covas pensou em atribuir a gestão dos cemitérios a entidades privadas sem fins lucrativos, como fez com os hospitais que inaugurou, geridos por Organizações Sociais de saúde. Isso seria uma forma de não "privatizar" os imóveis, o que poderia dar às famílias concessionárias dos túmulos em área pública a sensação de que alguém comprou os restos mortais de seus entes queridos.

    Seja qual for o contrato de gestão, a cidade precisa admitir que o modelo de administração dos cemitérios públicos é uma falsidade que agride o bom senso. É injusto que todos paguem para conservação do túmulo de uns poucos. É justo que cada família pague proporcionalmente pelo tamanho dos túmulos e a qualidade de serviços, que efetivamente sejam prestados.

    Para proteger os mortos do descaso e da falência do poder público, é bom que os cemitérios passem aos cuidados de entidades não-estatais, privadas. O dia de Finados é uma boa data para pensar nisso.

    leão serva

    Ex-secretário de Redação da Folha, jornalista, coautor de 'Como Viver em SP sem Carro', faz pesquisas no Warburg Institute, em Londres, com o apoio da Capes. Escreve às segundas.

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