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    Leão Serva

    A praça da Bandeira envergonha a Bandeira Nacional

    20/02/2017 07h01

    Divulgação
    otografia do italiano Marco Maria Zanin, em exposição na Janaína Torres Galeria (R. Joaquim Antunes, 177, s. 11, São Paulo)
    Fotografia do italiano Marco Maria Zanin, em exposição na Janaína Torres Galeria

    A grande praça central de São Paulo marca o momento em que as avenidas Nove de Julho e 23 de Maio se juntam no coração da cidade, o Anhangabaú. Quem olha para o alto vê ondular ao vento o "lindo pendão da esperança", "símbolo augusto da paz", cuja "nobre presença à lembrança, a grandeza da pátria nos traz", como dizem os versos do Hino à Bandeira, que dá nome ao local.

    Mas quem move os olhos, da grande bandeira sobre o mastro, em direção ao chão, vê um cenário deserto de vida, uma mistura de tons de cinza, claro do concreto e escuro do asfalto, e o colorido de centenas de ônibus empacotados. Constata então que a "praça" da Bandeira é, na verdade, uma garagem de ônibus privados ocupando um espaço público que poderia formar, com o Anhangabaú, um grande corredor democrático, misturando o umbigo paulistano com o símbolo pátrio.

    Mas a "praça" da Bandeira, em vez, simboliza o que houve de mais trágico e vergonhoso no urbanismo local: a contínua submissão de praças e parques à condição de suporte de avenidas e viadutos de concreto que consagraram o interesse da indústria automobilística sobre a dimensão humana. Em vez de homenagear, a "praça" agride a Bandeira Nacional.

    A "praça" não é mais praça, desde que foi transformada no "Terminal Bandeira", que o prefeito João Dória visitou recentemente. Para piorar os maus tratos, no final dos anos 1960, ela foi cortada por um "minhocão" horroroso, como outros construídos no centro da cidade naqueles anos de ditadura.

    Um processo semelhante fez terra arrasada do "parque" D. Pedro 2º, que na mesma época virou um imenso estacionamento de ônibus e carros encimado por um cipoal de viadutos. Ali, pequenas nesgas de jardim não conseguem sugerir que ali um dia existiu a grande área verde que servia como um dos principais pontos de encontro de paulistanos, antes da criação do Ibirapuera.

    Sucessivas administrações servis à lógica perversa do privilégio ao trânsito motorizado foram destruindo um a um "espaços públicos" da cidade, tal como define o autor Mauro Calliari no recém-lançado "Espaço Público e Urbanidade em São Paulo" (BEI, 2016) : lugares que têm uma escala humana, para não serem opressivos, e são palcos da vida, representada pelos encontros entre os habitantes das cidades.

    Com essas qualidades, explica o ensaio, os espaços públicos geram "prazer sensorial". Pense: que delícias um ser humano pode experimentar diante dos "minhocões" construídos nos anos 1960 e 70 sobre ex-praças como Marechal Deodoro ou 14 Bis, Bandeira ou D. Pedro 2º? Ao contrário, grandes vias de trânsito intenso e terminais de transporte criam "fraturas" dentro do tecido urbano, afastam os locais de convívio das pessoas, desertificam as áreas em volta e atraem atividades marginais, incluindo crimes e drogas. É por isso que a Cracolândia se localiza ao lado das grandes estações ferroviárias, por exemplo.

    Ao andar de ônibus, em 6/2, João Dória esteve no "Terminal Bandeira", como noticiou a imprensa. Foi até abordado por um simpático morador de rua. Imagino que nem tenha podido notar que sob aquele polo de logística, um dia, existiu uma praça. Para termos realmente uma cidade linda, a administração deveria pensar em como tirar os terminais e devolver ao prazer humano as praças centrais, como Bandeira, Princesa Isabel e o Parque D. Pedro.

    leão serva

    Ex-secretário de Redação da Folha, jornalista, coautor de 'Como Viver em SP sem Carro', faz pesquisas no Warburg Institute, em Londres, com o apoio da Capes. Escreve às segundas.

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