• Colunistas

    Thursday, 02-May-2024 11:43:16 -03
    Leão Serva

    Em dois autorretratos, a tragédia africana e sua diáspora

    10/07/2017 02h00

    Duas imagens de excelência da fotografia afro contemporânea foram evidenciadas nas últimas semanas em Londres, ambas ameaçadas pelo fogo. Duas obras artísticas construídas a partir de selfies. Embora cada uma "no seu quadrado", estilo, história e peculiaridades, ambas expõem a permanência do sofrimento de um continente conturbado e sua diáspora.

    O FINAL FELIZ - A NPG (National Portrait Gallery), em Londres, acaba de abrir uma exposição com autorretratos produzidos por Samuel Fosso, gênio africano subitamente tornado estrela com reconhecimento internacional.

    Fosso faz selfies desde o início dos anos 1970, e a mudança do estilo de sua produção retrata as alterações da cultura da África ao longo de mais de quatro décadas. Algumas das fotografias são elaboradas produções em estúdio, em que ele se fantasia de figuras típicas da crônica africana: um ditador, líder tribal, Muhammad Ali (como São Sebastião flechado), um homem nu, outro vestido, um morador de rua ou ricaço etc.

    Na NPG, a maior parte dos trabalhos são selfies recentes, numa espécie de "samba de uma nota só", dezenas de retratos de seu rosto que parecem ocupar, cada um, toda a tela de um tablet. O espectador percebe aos poucos as delicadas mudanças de expressão (e emoção). Em outra sala, cinco autorretratos feitos na juventude, na África.

    Fosso nasceu em 1962 em um lugar que é sinônimo de tragédia: Biafra, o Estado nigeriano que se declarou república independente no fim dos anos 1960 e foi palco da mais violenta guerra civil do tempo da descolonização africana. Ainda pequeno, ele fugiu para Bangui, na República Centro-Africana. Como todo refugiado, penou para sobreviver. Criança, trabalhava em estúdio de fotografia; aos treze anos se tornou proprietário. Diariamente, usava as pontas de filme (normalmente jogadas fora) e fazia fotos de si mesmo.

    A brincadeira virou rotina: ele passou a fazer autorretratos compulsivamente. Elaborou as produções, sofisticou os resultados, adotou as cores. Em meados dos anos 1990, se tornou uma celebridade regional, chegou a ganhar um prêmio na Holanda. Mas aí a saga da guerra civil atingiu o país que ele adotou.

    Em fevereiro de 2014, ele já tinha deixado a cidade quando seu estúdio em Bangui foi atacado e saqueado por milicianos que levaram tudo que acharam que tinha valor, máquinas fotográficas, móveis, aparelhos eletrônicos, enquanto destruíam o que não iam levar.

    Foi quando passou, fotografando o conflito nas ruas da cidade, o correspondente de guerra Jerome Delay. Notando uma movimentação estranha, ele se aproximou da casa. Quando entrou, viu, no meio da destruição, caixas e caixas de negativos e dezenas de fotos ampliadas. Percebeu que dentro da tragédia que engolia o país, uma outra destruía sua memória. Pediu ajuda para um militar da ONU e, com ajuda de soldados que cercaram o lugar, retirou cerca de 20 mil negativos das ruínas do estúdio. O correspondente de guerra, que desde os anos 1980 se dedica a retratar o lado mais abjeto da humanidade, foi anjo da guarda da obra de Fosso.

    Hoje, o africano é uma estrela da arte mundial. Suas fotos novas ou antigas, que escaparam da tragédia, valem milhares de dólares, com uma posição semelhante à de outros grandes nomes da fotografia do continente, como Malik Sidibé (do Mali, que também desenvolveu o gênio em um pequeno estúdio de fotos).

    FOGO INCLEMENTE - O anjo chegou cedo demais para a londrina Khadija Saye; e marcou de voltar na tarde seguinte. A jovem, de família oriunda de Gâmbia, morava no alto do prédio Grenfell Tower, que pegou fogo em 14 de junho. Sua carreira estava finalmente decolando depois de ter algumas de suas fotos escolhidas para uma mostra paralela de jovens artistas britânicos na atual Bienal de Veneza.

    Naquele mesmo dia, ela tinha hora marcada para apresentar seu portfólio a um galerista, iam escolher as obras de sua primeira exposição individual em Londres. Ele tinha querido ir ao seu estúdio, mas Khadija não quis recebê-lo em casa, onde trabalhava as fotos. Preferiu marcar na galeria. O fogo queimou o prédio, ela e a mãe não conseguiram fugir a tempo –hoje se sabe que as paredes externas estavam cobertas de material inflamável, que espalhou o fogo mais rapidamente, enquanto os alarmes de incêndio defeituosos não acordaram os moradores.

    Paradoxalmente, as únicas obras que restaram de sua curta carreira são autorretratos expostos em um dos principais eventos da arte mundial, a Bienal de Veneza (e suas reproduções na internet). Como Samuel Fosso, ela posava caracterizada como roupas e elementos tipicamente africanos, destacando objetos ligados a crenças tradicionais. Produzia os fotogramas usando técnicas antigas, o que dá a eles uma impressão de antiguidade e, por isso mesmo, eternidade.

    E em todas as imagens impera o rosto da jovem Khadija Saye, que iria se consagrar se não morasse em um prédio popular vitimado por um descuido criminoso que matou, além dela e da mãe, outras 78 pessoas, na maioria imigrantes pobres.

    DOIS SELFIES - A obra dos dois são autorretratos da tragédia da África e sua diáspora.

    leão serva

    Ex-secretário de Redação da Folha, jornalista, coautor de 'Como Viver em SP sem Carro', faz pesquisas no Warburg Institute, em Londres, com o apoio da Capes. Escreve às segundas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024