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    Leão Serva

    Doria, que tal privatizar a fiscalização municipal?

    07/08/2017 02h00

    Robson Ventura - 02.ago.17/Folhapress
    Estabelecimento viola lei Cidade Limpa em São Paulo
    Estabelecimento viola lei Cidade Limpa em São Paulo

    Desde que foi implantada, entre 2006 e 2007, a lei Cidade Limpa enfrentou a resistência dos fiscais municipais. A contrariedade se explica por sua essência disruptiva: ela tira dos agentes públicos o monopólio do julgamento do que está ou não está de acordo com as "posturas municipais".

    De tão simples, ao proibir toda publicidade externa, a lei permite que qualquer cidadão veja o que está errado e possa denunciar. De quebra, a clareza deixa explícito quando a fiscalização permitiu uma irregularidade em troca de propina: os olhos da comunidade podem desnudar também a corrupção.

    E quando o povo fiscaliza, a ação dos funcionários públicos se torna desnecessária (como mostrou o controle de preços no congelamento de 1986).

    Uma série de reportagens recentes da rádio CBN mostrou que, ao longo dos anos, a contrariedade se desenvolveu em uma organizada rede de venda de espaços públicos para anúncios irregulares, apelidada de "máfia da Cidade Limpa". Está implantada em todas as subprefeituras, com tabelas de preços.

    Logo ao tomar posse em 2013, o prefeito Fernando Haddad (PT) reduziu o combate à publicidade irregular na cidade alegando que só 10% das multas conseguiam ser cobradas. Alguém enganou o então recém-eleito: a lei Cidade Limpa tinha sido reconhecida como juridicamente perfeita até pelo Supremo Tribunal Federal. As multas eram derrubadas em alguma instância administrativa ou judicial quando continham equívocos formais, preenchimento equivocado ou baseado em regras erradas.

    Se Haddad tivesse desconfiado dos fiscais, em vez de desacreditar a lei, teria evitado o crescimento da máfia.

    Depois de uma onda de flagrantes contra fiscais pedindo propinas, nos anos 1990, a corrupção viveu nos anos seguintes uma sofisticação. Só um agente inexperiente ou muito cheio de si achaca um cidadão de forma clara. O mais das vezes, ele impõe a dificuldade como prevê a regra: emite multas contra aquilo que está errado, "cumpre seu dever".

    A venda da facilidade é feita depois, à medida que o processo tramita pela burocracia. E uma das formas de ter sucesso é apontar um defeito formal na multa emitida pelo fiscal, lá no início do processo. Possivelmente em um jogo de "multas marcadas".

    A outra forma de solapar a lei é criar exceções: no início não podia nenhuma publicidade; depois só em pontos de ônibus e relógios; no fim do mandato, a administração passada propôs que fossem permitidas em bancas de jornais; vereadores religiosos querem também em templos; os taxistas pedem nos seus pontos. Enquanto cada um pede o seu naco de publicidade externa, a corrupção comemora a expectativa de lucros futuros.

    A redução da propaganda aumenta o seu valor. Sem dinheiro em caixa, os prefeitos querem aproveitar o preço alto para gerar oportunidades de pagar serviços públicos. Doria havia acabado de mandar para a Câmara uma proposta de aumento dessas possibilidades (por exemplo, tentando resolver a crônica falta de banheiros públicos na cidade).

    A mágica da preservação da lei será sempre o equilíbrio entre pouquíssimas oportunidades, pagas a preços elevados e conforme regras claras para o cidadão. Se a lista de exceções cresce, o preço cai e o cidadão se aliena. Pronto, morre a Cidade Limpa.

    Um exemplo claro de que estamos perto desse limite foi a reação da administração municipal ao propor formas computadorizadas de controle da publicidade irregular e da fiscalização. O tempo passa e o povo esquece: durante o auge da poluição visual, a gestão da prefeita Marta Suplicy (na época no PT) lançou umas máquinas hi-tech que circulariam pela cidade com computadores de grande porte, fotografando os anúncios, calculando tamanhos e comparando leis...

    O mito da tecnologia é sempre usado para iludir a opinião pública em momentos de crise. A receita da empulhação política é: se não tem o que fazer, prometa uma solução tecnológica bem complicada, que vai dar um ar de eficiência e modernidade e adiar a pressão. [Na campanha eleitoral de 2010, Dilma Rousseff prometeu acabar com o tráfico de drogas nas fronteiras do país usando drones, na época uma novidade impalpável. Os traficantes entenderam a mensagem e seguiram usando as mesmas rotas e técnicas de sempre; o país tem um drone que raramente voa e sem capacidade de reprimir bandidos. Mas o assunto nunca mais chamou a atenção da opinião pública.]

    João Doria foi eleito em primeiro turno e assumiu a prefeitura com grande apoio da opinião pública para tocar uma ampla agenda de privatizações. Por enquanto, todas elas dizem respeito a patrimônios e uns poucos serviços. Se quiser ousar mais radicalmente deveria estudar a privatização de dois controles públicos sempre marcados por ineficiência e fisiologia: fiscalização e auditoria.

    Alguém tem dúvida de que uma empresa de auditoria controlaria muito melhor a Petrobrás do que o Tribunal de Contas da União (cujos componentes são apontados pela Presidência da República e pelo Congresso)? Ou que seria mais fácil controlar os números do sistema de ônibus de São Paulo com uma consultoria privada do que com o Tribunal de Contas do Município (formado por políticos aposentados, indicados pelo prefeito e pelos vereadores)?

    E a fiscalização: se ela fosse feita por empresas privadas focadas nessa missão, seria pior do que a "máfia da Cidade Limpa" ou que a "máfia do ISS" ou a "gangue dos alvarás" etc?

    Digamos que se uma empresa privada tivesse apenas a mesma eficiência, pelo menos economizaríamos os altos salários e as aposentadorias integrais desses funcionários ineficientes.

    E Doria inscreveria seu nome na história como o político que revolucionou a administração pública na forma mais resiliente de corrupção: a dos fiscais públicos.

    leão serva

    Ex-secretário de Redação da Folha, jornalista, coautor de 'Como Viver em SP sem Carro', faz pesquisas no Warburg Institute, em Londres, com o apoio da Capes. Escreve às segundas.

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