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    Leão Serva

    Ao duplicar Tamoios, Alckmin joga bilhões fora

    04/12/2017 02h00

    Não importa que motivos fazem o governador Geraldo Alckmin buscar recursos para duplicar a Rodovia dos Tamoios, que leva às praias do Litoral Norte de SP, mas o projeto retrata a visão ultrapassada do líder tucano, materializada no lema "governar é fazer estradas", criado por Washington Luiz, cem anos atrás.

    Não há espaço aqui para listar todos os danos que essa "mentalidade empreiteira" causou ao Brasil. Cito dois: somos mais dependentes de transportes sobre pneus (70% das cargas) do que os EUA (30%), que nos impingiram a obsessão com estradas e caminhões; e exportamos para diversos países a corrupção baseada na simbiose entre homens públicos dedicados a construções e construtoras dedicadas a obras públicas.

    Mesmo quando pautada pela honestidade, essa relação resulta em desperdício de dinheiro público. Ao longo do século 20, no entanto, ela adoeceu. É difícil definir se primeiro os homens públicos viram nas obras uma chance de corrupção ou os construtores enxergaram na propina a chance de ganhar obras públicas. Mas nos tornamos paradigma dessa mútua dependência.

    Zanone Fraissat - 19.set.2017/Folhapress
    O governador Geraldo Alckmin (PSDB) discursa na inauguração do Instituto Moreira Salles, em São Paulo
    O governador Geraldo Alckmin (PSDB) em discurso na inauguração

    No Brasil, os homens públicos entendem que devem deixar obras marcantes como legado. Os projetos são sempre feitos em nome do "interesse público", da necessidade de solucionar problemas importantes. E para a "mentalidade empreiteira", tudo se resolve com construções.

    Assim ocorre com os congestionamentos dos caminhos que levam ao Litoral. A duplicação das estradas é apontada como solução para o estresse que atrapalha fins-de-semana e férias de quem vai à praia.

    Trata-se, no entanto, de um desperdício de bilhões em dinheiro. O orçamento inicial da ampliação da Tamoios é de R$ 900 milhões, segundo a Folha.

    O aumento do gabarito de estradas não resolve engarrafamentos, ao contrário, engenheiros no mundo todo já sabem (mas nem sempre contam) que o crescimento das estradas é CAUSA e não solução.

    O trânsito funciona conforme a Lei da Oferta e da Procura: quanto mais oferta de estradas, maior a procura de carros por viajar nelas.

    Ronny Santos/Folhapress
    Congestionamentos são frequentes na marginal Tietê

    O falecido Roberto Scaringella, engenheiro pela Poli-USP e fundador da CET, resumia essa regra dizendo que "uma via nova serve para levar o congestionamento mais rápido até outro congestionamento". Referia-se tanto a "outro congestionamento" alguns quilômetros adiante quanto ao muito maior, produzido pela criação da via ao longo dos anos posteriores à sua inauguração.

    Em São Paulo, o exemplo perfeito é a ampliação da Marginal do Tietê, inaugurada em 2010 ao custo de R$ 1,5 bilhão, que em cinco anos estava congestionada de novo, mesmo tendo coincidido com a abertura do Rodoanel.

    A primeira reação dos céticos é crer que o aumento da frota explica o fenômeno. Os números mostram que nem de perto: por maior que tenha sido a venda de carros naqueles anos, não chegou nem a 10% do aumento do engarrafamento. Uma obra viária provoca trânsito. Ponto.

    Ao final do processo, os ganhadores são: empreiteiras que ganham com a construção; os donos de estradas (frequentemente, as próprias empreiteiras), que aumentam sua receita de pedágios; e as empresas petroleiras, que vendem mais combustíveis. Os muitos prejuízos são decorrentes de mais engarrafamentos, poluição, destruição ambiental e o desperdício de dinheiro público, de todos os cidadãos, em uma solução equivocada para problema de uns poucos privilegiados donos de carros. No caso das cidades de praia, acrescenta-se a comoditização do turismo e a desorganização de suas estruturas sociais e urbanísticas.

    Agora pergunte-se: porque um governante desperdiça tanto dinheiro em vez de investir em necessidades realmente urgentes de toda a população? Só vamos ter respostas quando suplantarmos a "mentalidade empreiteira".

    *

    Para saber mais sobre o assunto:

    Os estudos mais influentes sobre o tema chamado "Trânsito Induzido", ou "trânsito provocado", foram realizados a partir dos anos 1950 na Inglaterra e nos Estados Unidos. O texto "Empirical Evidence on Induced Traffic" (Evidências Empíricas sobre Trânsito Induzido), de Phil Goodwin, traz o resumo de vários trabalhos que levaram à admissão de sua verdade pelo governo britânico, passando a ser critério para análise de projetos viários naquele país.

    O texto "O caso do tráfego desaparecido: repensando o congestionamento de trânsito", de Thomas Samuels (publicado na "Revista dos Transportes Públicos" 88, em tradução de Osias Baptista Neto) relata a origem dos estudos que impactaram a opinião pública dos Estados Unidos e mostra que já em 1957 o presidente Dwight Eisenhower foi alertado de que o aumento das estradas iria congestionar o país e tirar do automóvel o estigma de liberdade de locomoção.

    leão serva

    Ex-secretário de Redação da Folha, jornalista, coautor de 'Como Viver em SP sem Carro', faz pesquisas no Warburg Institute, em Londres, com o apoio da Capes. Escreve às segundas.

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