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    Leon Cakoff

    O primeiro artigo

    09/08/2011 07h01

    Dona Ondina Del Cielo Oliveira, do Ginásio Albino César, no Tucuruvi, foi corajosa em confiar em quatro jovens inconformados com os sufocos da ditadura militar, ao final de 1967, que a procuraram na secretaria. Confiou nada menos que o seu mimeógrafo e quatro folhas de estêncil para folhas em branco cheias de ideias. Nas suas contas, seria suficiente para garantir uma tiragem de 500 exemplares do nosso primeiro jornal "Perspectiva". A medida que o cilindro girava, embebido em álcool, a folha de estêncil não resistia às perfurações. A última das quatro páginas saiu quase ilegível. Esta invenção de Thomas Edison, patenteada em 1887, foi uma das mais destruídas ou apreendidas nas invasões pela repressão da ditadura militar nos anos 60 e 70. O nosso mimeógrafo deve ter tido o mesmo triste fim e nunca mais foi colocado em ação.

    Começava no longínquo Tucuruvi, que se orgulhava de abrigar o maior cinema da América Latina, o Valparaíso, o meu beabá sobre liberdade de imprensa. Morava num bairro ainda mais distante, o Tremembé, quase uma cidadezinha do interior. Muitas vezes, no calor das discussões noturnas depois das aulas, e perdido o último ônibus da madrugada, era obrigado a voltar a pé para casa. Mas o prazer que me frigia a mente cegava também com o que fazer com tantas ideias ainda não postas em prática.

    O jornalzinho de modesta tiragem, sem a perspectiva de um segundo número, induziu-nos a um ato contínuo de rebeldia. O inconformismo precisava deixar o bairro. Os artigos daquele primeiro número ainda refrescam minha memória porque consegui salvar quatro de seus preciosos exemplares. E os li agora para ver se não estava delirando.

    Conhecedor que era da Cinelândia, no centro da cidade, fonte em que bebia atrás de lançamentos antes de esperar três ou mais meses até chegarem ao quase fim da linha do trem, no saudoso cine Ypê, procurei o mítico KG de Geraldo Vandré a fim de convidá-lo a dar uma palestra para a nossa turma de estudantes. Queríamos superar com ousadia a "rotativa" sequestrada.

    Fui ao ícone, meio ídolo, meio falastrão, e fiquei embasbacado pelo seu aceite ao convite trazido do Tucuruvi. Ia compensar a censura aos nossos textos com alguém que poderia falar por todos nós. Passados 44 anos releio com candura a resistência de colegial contra um estado de espírito asfixiante mas ainda indomado. Um dos artigos era evolucionista, sobre macacos e gorilas, outro resmungava contra o romantismo da Jovem Guarda. Mais um sobre famílias de retirantes ocupando caoticamente espaços urbanos. Nada parece ter mudado. E por fim um artigo louvando o sucesso do Cinema Novo, Glauber e "Terra em Transe" no Festival de Cannes. Este, sim, era o que me interessava. Transferir para o senso crítico toda uma história ainda impossível de codificar.

    É o destino –ali estava o meu destino. Nascia o crítico em mim. Teria de ir beber para sempre naquela fonte.

    Não lembro direito no que deu aquela tarde com um ídolo em carne e osso da MPB. Dona Ondina não acreditava nas consequência que dariam este nosso novo atrevimento.

    Lembro de um Vandré paquerando minha professora de inglês e a convidando para ir trabalhar com ele. Servi-lhe de escudo em outra tarde iluminada pelo acaso. Acabei sendo eu o contratado para organizar a bagunça de suas correspondências, sua agenda e, de cabeça, mergulhado no olho do furacão. Fui emancipado aos 20 anos. Vi passarem pelo seu dúplex na alameda Barros muitos dos aventureiros que queriam fazer carreira em política, uma fogueira de vaidades para ver quem saía melhor nas fotos de primeira página nos jornais do dia seguinte. O resto, pobres coitados, eram massas de manobra colhidas nas ruas, como nos pasquins pré-revolucionários de Gorky.

    O lado ídolo de Vandré seduziria por mais algum tempo até o baque do Ato Institucional Nº 5 de 13 de dezembro de 1968, que o fez desaparecer por muito tempo. Vandré era um polarizador nato. Logo desconfiei daquilo e guardei essa desconfiança como o meu mais seguro patrimônio. Os partidos lhe interessavam. Os políticos, não.

    Era um incendiário, mas carregava junto a arte de apagar incêndios. Aprendi muito com ele, com recursos ainda precários de distanciamentos tirados do teatro de Brecht. Brecht foi outro trampolim deste processo de ousadia. Por indicação de uma amiga, fui ensaiar nas horas vagas no Teatro da Hebraica, na Avenida Angélica. Em pouco tempo viram que se tratava de peça insurrecta. Não tive dúvidas. Fui de novo à fonte. Procurei a Augusto Boal, talvez o maior ícone teatral da América Latina, e lhe pedi horas alternativas para encenar no mítico Teatro de Arena. Era um texto reciclado, 'Revolução na América Latina', já esquecido na vertigem de tantos projetos novos. O incrível é que ele nos aceitou e deixou ensaiar. Até sermos atropelados, de novo, pelo AI5.

    Entre o teatro, cinema e o distante Tremembé, o que mais queria como aprendizado era ouvir as discussões sobre os destinos da nação brasileira. Pura falácia. Como sempre, perdia o ônibus, mas as distâncias pareciam cada vez mais próximas. O dúplex onde ninguém parecia querer dormir, querendo decidir os destinos da nação, conspirando contra as paredes, com baixas paranoicas e aterrorizantes do lado da resistência na clandestinidade. A solução era acampar naquele 'aparelho' mais romântico do que real. Numa das discussões mais quentes que assisti tentava-se demover a organização manipulada da UNE que deixaria rastros de lama, apontando o caminho de Ibiúna, para a glória de um jovem ambicioso chamado Zé Dirceu. Vejam as suas fotos da satisfação e de missão cumprida na janela do ônibus. Elas são um clássico na galeria do cinismo da política.

    Meu primeiro artigo levou-me longe demais. Ainda navego nas suas boas ondas. Acho que ainda sei me safar de correntes indesejadas. As distantes Tucuruvi e Tremembé deixaram de ser tão distantes assim. Não há mais distâncias que me assustam desde que fiz a mala e segui os passos de um Glauber Rocha caótico e determinado. Lembro-me com os olhos abertos de curiosidade a Dona Ondina ensinando-me como fazer funcionar aquele cilindro mágico que reproduzia às dezenas os nossos primeiros escritos.

    Descobriria depois, como num salto novo de maturidade e fascinado, que mergulhava em uma nova dimensão. Vi passeatas pela primeira vez e uma profusão variada de textos mimeografados, distribuídos e lançados ao ar em resmas mal secadas, voando pelas janelas dos escritórios bancários da rua Boa Vista. Trabalhava na mesma rua como auxiliar de caixa e aquele era o rumo pelas quais as passeatas serpenteavam, saídas sempre da praça da Sé, em direção ao largo do Correio ou da praça da República. Quando podia, lá estava também. Depois éramos invariavelmente dispersados pela força anárquica da cavalaria, gazes, cassetetes ou camburões desembestados à nossa espera. Devemos a um amigo do Tremembé o know how de lançar rolhas de cortiça para desequilibrar cavalos e cavaleiros de suas alturas majestosas. Amargou um bom período na cadeia militar do Barro Branco. Teria honras militares pelo invento se os tivesse lançado contra tropas inimigas em algum outro momento histórico.

    Por caprichos desses momentos históricos, talvez nem tivesse esta história pra contar.

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