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    Lira Neto

    Enquanto outro tempo não vem

    25/06/2017 03h25

    É desolador. Como se não bastassem as crises moral, política e econômica que nos assolam e nos azucrinam há tanto tempo –e todas elas sem sinal de bom termo à vista–, parece também vivermos em um período de curto-circuito das sensibilidades, um certo apagão cultural, algum deficit coletivo de inteligência, uma incapacidade geral de interpretação de textos.

    O Ministério da Educação, com apoio de pais desavisados e políticos oportunistas, mandou recolher das estantes das escolas públicas do país uma obra de literatura infantil inspirada nos gêneros narrativos populares, sob a acusação escalafobética de que ela seria "inadequada" à leitura das crianças por fazer, supostamente, a apologia do incesto.

    A obra literária que caiu no Index Prohibitorum do Ministério da Educação é "Enquanto o Sono Não Vem", de José Mauro Brant, uma sensível e bem urdida seleta de recontos livremente baseados na tradição oral brasileira.

    Antes, o livro havia sido selecionado para compor o acervo do Pacto Nacional de Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), com base em parecer positivo do Centro de Alfabetização e Leitura da Universidade Federal de Minas Gerais. O motivo de todo o escarcéu é que consta, entre os textos do pequeno volume, uma historieta em versos definida como "romance" e intitulada "A Triste História de Eredegalda", narrativa que reproduz uma temática recorrente ao grande repertório das oralidades universais: o rei cruel que deseja casar com a mais bela de suas filhas.

    Tanto nas versões tradicionais, cujas matrizes e trânsitos se perdem na noite do tempo, como no delicado reconto de Brant, a princesa assediada rechaça o infame pedido de casamento e resiste incólume às punições determinadas pela tirania do pai, incluindo o castigo supremo de ser trancafiada em uma torre inacessível.

    No livro, o autor explica que "romance", nesse caso, é uma forma de poesia popular cantada, de teor narrativo, herança ancestral dos antigos menestréis e trovadores da Europa medieval. Quase sempre abordam histórias trágicas, vividas em reinos imaginários, e originalmente eram cantadas nas ruas, feiras ou praças públicas.

    "Os romances foram trazidos pelos colonizadores portugueses e espanhóis e até hoje sobrevivem na memória das velhas romanceiras nordestinas", detalha Brant, de forma didática. Qualquer menino ou menina, das mais diversas gerações e localidades, que porventura já tenham ouvido alguém cantar ou contar o drama de Eredegalda (ou de Silvaninha, Valdomira e Faustina, conforme a região do país onde se recolha a variação da mesma narrativa, nos adverte Brandt, em límpida nota explicativa) compreende que aquilo é, antes de mais nada, um conto folclórico. Ou seja: um gênero literário que usa da fantasia para tratar, de forma simbólica, de sentimentos e temas atemporais, como medo, cobiça, amizade, paixão e morte.

    Mas os doutos censores do Ministério da Educação só conseguiram enxergar na tradição poética de Eredegalda imoralidade e escândalo, incesto e pedofilia. Pelo mesmo raciocínio, os mesmos ilustrados senhores talvez entendam na clássica cena da bruxa má que encomenda a morte de Branca de Neve, quem sabe, uma terrível apologia do homicídio de virgens cândidas.

    Ou, de modo igualmente trôpego, interpretem o episódio de três porquinhos cozinhando um lobo mau no caldeirão de água fervente, ao final de outro conto infantil tradicional, como um incentivo a que os oprimidos façam justiça com as próprias mãos.

    De acordo com os argumentos dos que trabalharam para proibir o livro, as crianças não teriam autonomia, maturidade e senso crítico para problematizar determinados temas. Na verdade, desconfio que faltem exatamente a eles próprios, políticos broncos e burocratas da educação, as qualidades que dizem estar ausentes nos pequenos.

    Enquanto o Sono Não Vem
    JosÉ Mauro Brant
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    Além do mais, deveriam saber que a compra de livros pelo governo para abastecer bibliotecas escolares é apenas uma das muitas pontas do processo de estímulo à leitura no país. Outra seria a devida qualificação dos mediadores de leitura, ou seja, dos profissionais que têm o papel de fazer a ponte efetiva entre o leitor e o livro.

    Mas como acreditar que tais senhores estejam preocupados com a formação humanística de professores e educadores quando se mostram muito mais interessados em censurar livros infantis e fazer valer uma grande reforma do ensino médio sem antes discuti-la com a própria sociedade?

    lira neto

    É jornalista, pesquisador e biógrafo de nomes como Maysa e José de Alencar, e publicou uma trilogia sobre Getulio Vargas. Ganhou quatro prêmios Jabuti. Escreve aos domingos, a cada 2 semanas.

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