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    Lira Neto

    Um livreiro na contramão

    12/11/2017 02h00

    Maíra Mendes/ Editoria de Arte/Folhapress

    Jamais caia na bobagem de perguntar ao livreiro Lúcio Zaccara se ele tem, nas prateleiras da loja, qualquer um dos badalados romances de Elena Ferrante à venda. "Não trabalho com esse tipo de literatura", será a resposta. Menos aconselhável ainda é indagá-lo sobre obras do tipo "50 Tons de Cinza", manuais de autoajuda ou autobiografias de youtubers. "Só vendo aquilo que posso recomendar, sem constrangimentos, ao leitor."

    Esse senhor alto, magro e vivaz, de insuspeitados 60 anos, também é avesso a promoções e jogadas de marketing. Por isso, nunca fez qualquer tipo de propaganda do seu negócio. Mantém uma discrição quase monástica. "Não quero atrair gente que sairá decepcionada por não encontrar o best-seller da moda", justifica. "Quem está acostumado a entrar aqui já sabe que topará apenas com livros de qualidade."

    Divulgadores não conseguem convencê-lo a afixar banners de vinil relativos a eventos literários. Ele aceita apenas cartazes em papel, que considera mais elegantes e amigáveis. De preferência, mandados confeccionar por ele próprio e assinados por artistas gráficos de renome.

    Não permite, igualmente, pilhas de um mesmo lançamento na vitrine ou no interior da loja. Ali não é supermercado para ter gôndola, parece sugerir, criticando a prática das grandes redes alugarem espaços para editoras.

    "Não vendo literatura no quilo", emenda, recriminando a prática de descontos estratosféricos promovidos por lojas virtuais, como a Amazon. "Pode parecer aparentemente vantajoso para o leitor, mas na verdade é predatório: a médio prazo, extinguirá as livrarias físicas, as editoras e, no limite, o próprio livro.".

    Na internet, seu comércio dispõe de uma simples página no Facebook (curtida por público reduzido, mas tão fiel quanto seleto) e um site minimalista, onde não há links para vendas online.

    Lúcio prefere o contato pessoal com o comprador, olho no olho. Em uma época na qual a figura do livreiro que conhece livros é uma espécie em extinção, ele faz questão de atender cada cliente de modo personalizado. Sabe as preferências do freguês, puxa conversa, avisa da chegada de um título sob encomenda, sugere novidades. Contudo, prefere se definir como um "zelador de livraria": "Limpo o banheiro, faço o café, varro o chão, cuido muito bem daquilo de que gosto".

    Zelo, aliás, é o que não falta à casa, um simpático e acolhedor sobradinho do bairro paulistano de Perdizes. No andar de baixo, ficam as estantes com os livros novos e os discos, a maioria de artistas independentes. No de cima, um sebo e um auditório de bolso, de só 24 lugares, onde ocorrem pocket-shows, apresentações teatrais e vernissages.

    A cada mês, dois clubes de leitura reúnem apaixonados por literatura em torno de uma nova obra literária. Só neste ano, Lúcio já promoveu 90 eventos no espaço.

    Não à toa, Danilo Miranda, diretor do Sesc-SP, frequentador assíduo, refere-se ao local como algo além de uma mera livraria: "É um minicentro cultural".

    Tudo começou quando Lúcio, após abandonar a faculdade de Direito, resolveu montar, em 1982, com a namorada, hoje sua mulher, Cris Zaccara, uma lojinha de discos usados. "Nunca fui empresário, não sou obcecado pelo lucro, sempre trabalhei por paixão", comenta. Em 1997, o casal comprou um combalido sobradinho, que passou dez anos reformando. É onde hoje funciona a Livraria Zaccara.

    Quando indagado se é possível sobreviver financeiramente trafegando na contramão do mercado, cenário no qual as livrarias de rua praticamente desapareceram e as grandes redes estão cada vez mais parecidas e despersonalizadas, Lúcio diz não ter do que se queixar.

    "Há 35 anos, vivo de vender discos e livros, sempre me mantendo fiel a este formato, sem fazer concessões à massificação", orgulha-se. "Criei dois filhos e tiro meu sustento exclusivamente daqui."

    Certa vez, um jornal paulistano quis fazer uma reportagem sobre "as livrarias mais charmosas da cidade". Quando tentaram entrevistá-lo pelo telefone, ele desculpou-se. "Sinto muito, não vou poder entrar na matéria. Estou fechando; a partir de amanhã não abro mais."

    Era mentira, claro. Ele apenas não conseguia entender como alguém pretendia escrever um texto à distância, sem colocar os pés em um lugar tão sedutor e que valoriza, em pleno tempo de virtualidades, o contato imediato entre pessoas e palavras, leitores e livros.

    lira neto

    É jornalista, pesquisador e biógrafo de nomes como Maysa e José de Alencar, e publicou uma trilogia sobre Getulio Vargas. Ganhou quatro prêmios Jabuti. Escreve aos domingos, a cada 2 semanas.

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