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    Lira Neto

    Papai Noel: negro e gay

    24/12/2017 02h00

    Maíra Mendes/Editoria de Arte/Folhapress

    Santa Claus, ou seja, Papai Noel, é negro e gay. Aquele outro senhor de bochechas rosadas e olhos azuis, estampado em todas as propagandas e enfeites natalinos, é David Claus, seu respectivo marido.

    Isso mesmo: Santa Claus e David Claus, dois senhores barbudos, gorduchinhos e de meia idade, são casados. Vivem juntos no Polo Norte, no topo do mundo, e mantêm um relacionamento homoafetivo e inter-racial amável e bem-humorado.

    Dividem as tarefas domésticas, assistem à TV de mãos dadas, dançam ouvindo música no rádio. Passam as férias na praia, brincam com o cachorro, jogam peteca, plantam girassóis.

    De vez em quando, um dorme deitado no colo do outro, no sofá. Papai Noel ressona sorridente, enquanto David Claus lê um livro, os pés agasalhados por pantufas cor-de-rosa com cara de coelhinho.

    A cada final de ano, porém, a mesma trabalheira os aguarda. É preciso checar a interminável lista de pedidos das crianças dos mil cantos do planeta, supervisionar a fabricação dos brinquedos a cargo dos elfos, fazer as inúmeras entregas na noite de Natal e, em meio a tanta correria, ainda encontrar tempo para recorrentes aparições nos pátios decorados dos shoppings centers.

    Por esse motivo, David às vezes substitui Papai Noel em algumas das tarefas natalinas. Daí, também, muita gente os confunde e acredita que o "bom velhinho" seja caucasiano: toma o branquelo David Claus pelo afrodescendente Santa Claus.

    Este é o enredo de um encantador e divertido livrinho infantil que acaba de chegar às livrarias dos EUA, com o título de "Santa's Husband" (O marido do Papai Noel), publicado por uma das maiores editoras do mundo, a HarperCollins.

    A ideia do livro surgiu quase por acaso. No ano passado, quando um shopping estadunidense contratou um homem negro para se fantasiar de Papai Noel, as redes sociais foram assoladas por impropérios racistas. O roteirista Daniel Kibblesmith decidiu embarcar na discussão e, falando por ele e pela esposa, escreveu no Twitter:

    "Decidimos que nossos futuros filhos só conhecerão o Papai Noel preto. Caso vejam o branco, diremos que é o marido dele." O post recebeu 8.300 likes e 3.000 retuítes. Em um deles, a ilustradora Ashley Quach respondeu: "Boom. Novo livro infantil".

    A história do Papai Noel negro e homossexual, escrita por Kibblesmith e ilustrada por Quach, consegue ser, ao mesmo tempo, terna e irônica. Kibblesmith enfrenta a intolerância e o preconceito com frases curtas e certeiras.

    "As pessoas já imaginaram o Papai Noel de centenas de maneiras diferentes ao longo dos anos", diz um trecho, chamando a atenção para o modo como as tradições culturais são fruto de construções históricas, incluindo aquelas instigadas pela mídia e pela sociedade de consumo.

    "Talvez Papai Noel possa vir em todas as formas, cores e tamanhos", prossegue o texto, "exatamente como as famílias que ele visita em todo o mundo". A esse ponto, as imagens aquareladas, retratando diferentes arranjos familiares, complementam e dão maior expressividade aos sentidos da narrativa, com sutileza, humor e sensibilidade.

    A exemplo de todo casal, é claro, Papai Noel e David Claus costumam ter eventuais desentendimentos. David sempre reclama, por exemplo, quando Papai Noel esquece de tirar as botas ao chegar em casa, descendo pela chaminé e sujando de fuligem o chão da sala.

    Nada que não possa ser resolvido com beijos, uma boa troca de afagos, um copo de leite e um prato de biscoitos, como sugerem o texto e a imagem de Santa Claus e David Claus esfregando as respectivas barbas brancas, em gesto de carinho.

    Temas paralelos, como o aquecimento global, a necessidade de uma alimentação saudável e os direitos trabalhistas são abordados de forma igualmente espirituosa.

    O Polo Norte está cada vez mais quente (até por causa das chaminés das fábricas de brinquedos de Papai Noel), as renas são alimentadas só com vegetais orgânicos e, em tempos de desmonte do Obamacare, David Claus negocia com os elfos condições mais justas de trabalho, incluindo um bom plano de saúde.

    Torço para que alguma editora brasileira se interesse em negociar, o mais breve possível, os direitos de publicação da obra de Daniel Kibblesmith e Ashley Quach em nosso país. Se isso acontecer, já tenho o presente garantido para oferecer à minha filha, de oito anos, no próximo Natal.

    lira neto

    É jornalista, pesquisador e biógrafo de nomes como Maysa e José de Alencar, e publicou uma trilogia sobre Getulio Vargas. Ganhou quatro prêmios Jabuti. Escreve aos domingos, a cada 2 semanas.

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