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    Luciana Coelho

    Série converte Harry Potter em Don Draper

    DE SÃO PAULO

    08/02/2015 02h00

    Esqueça Harry Potter. Daniel Radcliffe, o então garoto que deu corpo no cinema ao bruxo criado por J. K. Rowling, cresceu e virou um ator de opções ousadas em palcos e telas. "Diário de um Jovem Médico", que nasceu na BBC, passou pela HBO e cai agora na Netflix, é a mais sui generis dessas escolhas.

    Os quatro episódios de 25 minutos dessa comédia são adaptados de uma série intermitente de contos do dramaturgo russo Mikhail Bulgákov (1891-1940), ele mesmo médico e enviado, recém-formado, a um hospital remoto da Província de Smolensk em 1917, quando a Revolução Russa dizimaria o czarismo.

    É dessa experiência que ele moldou seu personagem, o médico jovem, e a carga de referências históricas, crítica política, humor sombrio e realismo mágico que depois tornariam sua obra admirada (inclusive pelo ditador Joseph Stálin).

    Divulgação
    Os atores Jon Hamm (à esq.) e Daniel Radcliffe, na minissérie 'Diário de um Jovem Médico', da HBO
    Os atores Jon Hamm (à esq.) e Daniel Radcliffe, na minissérie 'Diário de um Jovem Médico', da HBO

    Esse contexto, sozinho, já mereceria atenção –há muito sarcasmo e pouca condescendência na forma como o autor descreve a potência russa em mutação, com seus camponeses ignorantes atormentados pela sífilis, suas paragens inóspitas e aquele frio na alma tão peculiar aos artistas do país.

    Os roteiristas acertaram a mão nos diálogos e composições de cena mais teatrais, o que ajuda a tornar tudo mais esquisito e, após o estranhamento inicial, fascinante.

    Surte efeito, também, o esforço em amarrar contos dispersos e escritos em diferentes épocas originalmente para o jornal do sindicato dos médicos russos (!).

    "[Não] havia precedentes para um drama cômico russo de época com temática médica", lembrou um dos roteiristas, Alan Connor, em artigo publicado na época pelo jornal "The Guardian". A saída, explicou, foi destacar o aspecto universal da missão do jovem médico, recém-formado, morrendo de medo diante de seu primeiro trabalho importante.

    "Todos se lembram da insegurança trazida pelo primeiro emprego."

    O resultado é uma "meditação sobre a memória", como definiu Radcliffe, o protagonista, e sobre como amadurecer é também empedernir.

    Fica fácil sentir empatia pelo jovem doutor, em seus constantes diálogos imaginários com seu "eu" mais velho (Jon Hamm, de "Mad Men").

    Fã de Bulgákov a ponto de ter ido a Kiev visitar a casa do autor e de ter começado ele mesmo a tentar adaptar os contos, o ator de 25 anos consegue fazer o espectador se esquecer de Harry Potter, pilotando seu médico entre o absurdo e o cinismo.

    Hamm, porém, leva o ar soturno de Don Draper para o médico velho, culpa da natureza amarga dos dois.

    A espiral em que o protagonista se mete, aos poucos engolido pelo buraco onde vive e pela crescente dependência de morfina, transforma, sutilmente, a comédia-de-época-russa em um drama moderno, o que garantiu audiência suficiente para uma segunda temporada exibida no fim do ano passado (ainda sem data para entrar no site).

    luciana coelho

    É editora de 'Mundo' e foi correspondente em Nova York, Genebra e Washington. Escreve às sextas sobre séries de TV.

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