Parecia haver pouco espaço no incrível novo mundo das séries para um thriller de espionagem à moda antiga -sem hackers, sem malabarismos com a câmera, sem contagem regressiva nem trilha frenética, apenas aquela velha conspiração envolvendo um vilão inequívoco e um incauto disposto a fazer o bem.
"The Night Manager", minissérie do canal AMC em seis episódios que revisita a obra homônima de John le Carré e agora é vendida no iTunes, lembra-nos que velhas receitas servem excelentes pratos se executadas hábil e caprichosamente.
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Os atores Tom Hiddleston (como Pine) e Hugh Laurie (como Roper) em cena de "The Night Manager", série do canal pago AMC |
Lançado em 1993, o livro do britânico Le Carré carecia de alguma atualização. Como crises internacionais no mundo árabe não faltam, o estopim da trama foi facilmente transposto da primeira Guerra do Golfo (1991) para a Primavera Árabe (2011), a onda de revoltas na região que culminou na queda do ditador egípcio Hosni Mubarak.
Um personagem central do livro, o chefe de espionagem britânico Burr, na minissérie é mulher -composta com sobriedade pela ótima Olivia Colman (a filha de Margaret Thatcher em "A Dama de Ferro"). Le Carré, em carta divulgada para a promoção da série, aplaudiu a mudança e disse que gostaria de ter imaginado a personagem já assim (e grávida, tal qual a adorável protagonista do clássico "Fargo" ).
De resto, é o enredo original, com as melhores notas de James Bond e personagens bem mais densos e/ou contritos, como é a praxe do escritor (ver "O Jardineiro Fiel" e "O Espião que Sabia Demais"). Tom Hiddleston como o herói titubeante Jonathan Pine e Hugh Laurie (o "House", no sotaque original) como o vil Richard Roper são ases na missão.
A trama traz um homem que enriqueceu vendendo armas ilegalmente e alimenta o estoque de ditadores e do crime organizado sem maior obstáculo; um gerente de hotel do turno da noite (o que dá título ao thriller) com passado de soldado descobre parte dos planos e, reviravoltas cá e lá, tenta impedi-lo.
O terceiro vértice é a agente do MI6, o serviço de espionagem britânico (ao qual, aliás, Le Carré serviu quando ainda se chamava David Cornwell e que permeia sua obra).
Como o tráfico de armas é provavelmente o problema mais perene da geopolítica global, o enredo, com os pequenos deslocamentos, segue instigante, e o maniqueísmo de Guerra Fria característico do autor torna-se verossímil em uma época de heróis e bandidos mais difusos.
Segundo Le Carré, as revoltas no Oriente Médio, recém-ocorridas, ofereciam um cenário mais inédito do que a guerra às drogas do original ("filmes intermináveis já a retrataram", escreveu). Funciona.
A mão firme da diretora dinamarquesa Susanne Bier ("Brothers"), ex-integrante do movimento Dogma 95, mais um orçamento gordo arrematam a produção muito acima da média. Pena que o AMC, que exibiu a série em fevereiro e março, só esteja na operadora Sky.
Os seis episódios de "The Night Manager", do AMC, são vendidos no iTunes, da Apple
É editora de 'Mundo' e foi correspondente em Nova York, Genebra e Washington. Escreve às sextas sobre séries de TV.