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    Luciana Coelho

    Força de 'Justiça' está em contrastes e aridez

    27/08/2016 17h09

    Não é à toa que "Justiça", a série em 20 episódios que a Globo estreou na segunda (22), chama a atenção de diferentes tipos de espectadores.

    Construída a partir de contrapontos que fortalecem um ritmo narrativo de coito interrompido —a trama é ágil e intensa, mas, ao dedicar cada dia da semana à história de um protagonista, ela obriga o público a esperar a semana seguinte para satisfazer sua ansiedade—, a série foge do lugar comum subvertendo clichês pelo contraste.

    Isso fica claro já na premissa do drama: o que é justo e o que é certo? Seria mais eficaz seguir a lei de Talião, a do olho por olho/dente por dente? Ou a paz está em deixar para trás o que corrói e corrompe?

    Pode parecer fácil tomar um lado do dilema, mas, em um país onde a impunidade é percebida como regra, não há respostas simplistas, ainda que a pergunta seja velha.

    E aí está o trunfo do texto de Manuela Dias, a dramaturga de 38 anos que escolheu não ceder a maniqueísmos (acertadamente, o único cinza entre tantos contrastes está no caráter dos personagens). Assim ela se afasta do que por muito tempo foi regra nas novelas brasileiras e séries americanas e se aproxima da tendência de distopias e anti-heróis das séries estrangeiras.

    São quatro personagens centrais —o playboy que mata por ciúme; a doméstica presa por tráfico em um flagrante armado pelo vizinho; a estudante negra autuada como traficante em uma blitz na qual é a única revistada, e o marido que concorda em matar a mulher bailarina fadada a uma vida de limitações— punidos por crimes cometidos no mesmo dia com sentenças semelhantes.

    A escolha de Dias pela aridez, pelo difícil, funciona porque casa com seus personagens e com a direção de José Luiz Villamarim, ousada e segura (ele já havia feito o mesmo na revisitação de "O Rebu", em 2014). O resultado é um hiper-realismo incômodo, aflitivo e fascinante.

    O resto está ali para servir ao mesmo propósito de contrapontos: o elenco cuidadosamente escalado entre novos e velhos nomes da casa (a Fátima de Adriana Esteves é de uma força descomunal); a trilha que antepõe MPB clássica e doída a hits alegres do indie rock gringo; o Recife ora pulsante, ora anacrônico como cenário e coadjuvante da trama.

    Quanto ao formato de histórias cruzadas, tão comentado, Dias e Villamarim não descobriram nada. Seu mérito está em usar com precisão algo de que o cinema e alguns autores de TV vêm abusando.

    Guardadas as proporções, estão muito mais inspirados no escritor americano William Faulkner (1897-1962) e seu magistral "O Som e a Fúria", que usa o recurso somado à multiplicidade de pontos de vista para adensar personagens e desdobrar a narrativa, do que no maneirismo de um Alejandro Iñárritu, o diretor mexicano que esgarçou a fórmula.

    A série está no começo e há muitos tropeços possíveis. Com ingredientes tão bons, porém, será uma decepção se não resultar no melhor.

    "JUSTIÇA" é exibida pela Globo às segundas, terças, quintas e sextas, às 22h25

    luciana coelho

    É editora de 'Mundo' e foi correspondente em Nova York, Genebra e Washington. Escreve às sextas sobre séries de TV.

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