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    Luciana Coelho

    O que fazer com a obra de Louis C.K. após as denúncias de assédio?

    19/11/2017 02h00

    Das acusações de estupro, agressão sexual e assédio a artistas e produtores americanos nas últimas semanas, as mais doloridas para colegas, críticos e fãs são aquelas voltadas ao humorista Louis C.K., autor de "Louie", "Horace and Pete" e "Better Things" (todas elogiadas entusiasticamente nesta coluna).

    C.K., o cara que baixou as calças diante de colegas mulheres e as fez assistir a sessões de masturbação. O sujeito que passou anos negando o mesmo rumor e, só quando as acusações explodiram no "New York Times", levando ao boicote de seu novo filme, admitiu o erro, disse não ter percebido o peso dos atos na época e prometeu tentar melhorar.

    O impacto difuso das revelações sobre o humorista não se deve ao fato de seu delito ser menor do que os do produtor Harvey Weinstein e do ator Kevin Spacey, embora o seja. Seu erro, enfatize-se, é injustificável sob qualquer perspectiva.

    Nem a ele ser considerado por muitos um gênio da crônica, talvez o melhor dramaturgo em atividade (ou nem tanto, dado o boicote).

    Eric Leibowitz/FX
    Comediante Louis C.K. em cena do seriado 'Louie
    Comediante Louis C.K. em cena do seriado 'Louie'

    A questão difícil para críticos e fãs —não para canais de TV, distribuidoras de filmes e outros que tenham dinheiro a perder no negócio— é que, diferentemente dos demais, sua obra calcada na mesquinharia e na melancolia das profundezas humanas é indissociável de seu erro, porque, sempre soubemos, é ele mesmo a inspiração de suas histórias.

    Não é um dilema de resposta clara.

    Cortar a cabeça do delinquente, expô-la na praça e salgar o terreno onde vive ou, por outro lado, tratar o ocorrido como brincadeira tonta —e as reações como exagero da correção política— não é aceitável para quem conhece a obra de C.K.

    A primeira a por sua decepção em palavras foi Emily Nussbaum, crítica da revista "New Yorker": "Todos escreveremos sobre como os escândalos mudam a forma de vermos a arte [desses indivíduos], esta questão é para críticos, fãs e filósofos".

    "É uma questão particularmente pungente ao tratar de 'Louie', sitcom autoral em que o protagonista é explicitamente baseado em seu criador, e 'Horace and Pete'".

    Nussbaum, dona de um prêmio Pulitzer, acertou: as séries de C.K., reiteradamente, trataram de assédio sexual como banal, corriqueiro. Está lá, em diversos episódios.

    Jamais saberemos, porém, se era a tentativa desamparada de mostrar como o mundo é sombrio, à la Nelson Rodrigues, ou a blindagem preventiva das consequências do que ele fazia fora da tela, nem tão longe assim de câmeras e palcos.

    E assistir às séries de C.K. com essa dúvida pode ser ao mesmo tempo uma tortura e um exercício prolífico, sobretudo se nos perguntarmos até onde compactuamos.

    Porque por muitas vezes os roteiros de C.K. degradaram as mulheres, mas também por outras tantas as engrandeceram, e está aí "Better Things", coescrito com a brilhante Pamela Adlon, para tirar a dúvida. (Adlon, aliás, foi um raro silêncio, pedindo resguardo por estar 'chocada e devastada' com a revelação.)

    Sobretudo, muito do caso de C.K., um guru de grande séquito, reflete o corporativismo do clube masculino da comédia, onde mulheres são tão raras atrás do microfone e tão frequentemente alvo das piadas.

    Por isso também a defesa de sua obra, por ora expurgada de todas as telas, virá sempre mais deles do que delas. "Se tratarmos dos desequilíbrios na comédia, esta arte que molda a forma de pensar das pessoas, as piadas que elas repetem para suas famílias e sua noção de quem merece o microfone, outros desequilíbrios poderão se seguir", argumentou no mesmo "Times" a escritora feminista Lindy West.

    Nesta Folha, dois colunistas fundamentais, Hélio Schwartsman e João Pereira Coutinho, lembraram que não devemos impregnar a obra dos crimes de seus autores, a menos que a obra represente, ela mesma, esses crimes (nenhum dos dois citou C.K.).

    O melhor seria o humorista ser denunciado pelas cinco mulheres que o acusaram e responder pelo que fez à Justiça. Seu crime, contudo, não acarreta pena rigorosa pela lei. Ainda assim, em nosso juízo sumário, sua obra foi desterrada, talvez por um longo, longo tempo.

    Correm rios entre mulheres progressistas e homens liberais. Mas entre ostracismo e perdão, entre os exames sóbrios de Nussbaum, West, Coutinho e Schwartsman, a revisão da obra de C.K., com lugar para questionamento e revolta, parece o caminho mais fértil para os fãs.

    Esta coluna passará a circular às sextas-feiras na próxima semana.

    luciana coelho

    É editora de 'Mundo' e foi correspondente em Nova York, Genebra e Washington. Escreve às sextas sobre séries de TV.

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