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    Lucy Kellaway - Guilherme Brendler

    Cinquenta tons de revolta feminina

    LUCY KELLAWAY
    DO "FINANCIAL TIMES"

    16/04/2013 15h30

    Desde o sucesso retumbante de "Cinquenta Tons de Cinza", não faltaram títulos oportunistas que pegaram carona na onda: "Fifty Shades of Gravy" (Cinquenta tons de molho salgado), "Fifty Sheds of Grey" (Cinquenta galpões de cinza), "Fifty Shades of Lady Catherine Grey" (Cinquenta tons de lady Catherine Grey), "Fifty Shades" (um livro sobre óculos de sol) e, um título menos óbvio, "Fifty Shades of Niall" (Cinquenta tons de Niall). Este último revela, para nossa decepção, não ser sobre o historiador Niall Ferguson, mas sobre um integrante da banda teen One Direction.

    O acréscimo mais recente a essa pilha é diferente. "Fifty Shades of Feminism" não é cômico, irreverente ou safado de qualquer maneira. Na verdade, é sério, sincero e tão "certinho" que quase me faz sentir vontade de ser amarrada a uma cama e levar uns tapinhas.

    Cinquenta anos após a publicação de "A Mística Feminina", de Betty Friedan, as escritoras Lisa Appignanesi, Rachel Holmes e Susie Orbach convidaram 47 mulheres de destaque a unir-se a elas para marcar a ocasião. "Este concerto de tons é um coral de muitas vozes", elas declaram na introdução à sua coletânea de ensaios, ousando na metáfora e em sua interpretação.

    Na realidade, não há 50 tons aqui. Há apenas um, que é identificado pela crítica Bidisha como o vermelho: a cor da raiva, do sangue, da sobrevivência etc.

    As colaboradoras formulam queixas diversas sobre os males que as mulheres ainda enfrentam –a erotização de garotinhas, as marias-chuteiras, as modelos da página 3, o domínio dos homens no mundo, a discriminação, o estupro, a desigualdade salarial, o sexismo, a escassez de juízas mulheres, os males da pornografia, a prostituição infantil, os telhados de vidro. Muitas delas apresentam argumentos importantes, mas com certeza há algo de positivo a ser dito também, não?

    Mulheres altamente instruídas, privilegiadas, bem-sucedidas, como é o caso de muitas dessas escritoras, vêm se saindo melhor nas últimas décadas que qualquer outro grupo no mundo. Então será que pelo menos uma delas não poderia gritar "viva!"?

    Até mesmo a atriz Juliet Stevenson, admitindo que sua própria vida na realidade é bastante agradável, reclama da aridez dos papéis que representa hoje. Como cinquentona, a única coisa que lhe cabe é a chance de fazer personagens que dizem "está aqui seu bife, meu bem", e depois voltam para a cozinha.

    Num caso ainda menos desculpável, Joan Bakewell quer que tenhamos pena dela por sua vida interessante e diversificada: "Já fui amante, esposa, mãe, apresentadora, jornalista, divorciada, avó, cidadã, romancista, lutando para reunir muitas identidades sem me vergar sob a pressão", ela resmunga.

    Natasha Walter observa que as narrativas feministas mais poderosas são autobiográficas, com o sofrimento pessoal sendo utilizado para incitar raiva.

    Mas, e se sua própria história não induz à raiva, mas à gratidão, o que fazer? É possível ser feminista e também ousar dizer isso?

    Minha própria história foi assim: sou filha de uma muito amada professora de inglês na Escola Camden para meninas, famoso centro de militância feminista. Minha mãe odiava "istas" e "ismos" e nunca me disse que era difícil ser mulher –e, de fato, não tem sido difícil. Ela me criou para pensar que posso dizer e fazer o que eu quiser. Graças ao trabalho de mulheres que lutaram muito nos últimos 200 anos, tive acesso a oportunidades e me beneficiei da discriminação positiva.

    Não consigo pensar em uma única coisa que eu quisesse fazer e que não pude por ser mulher –com a possível exceção de ir ao banheiro masculino nos intervalos do teatro, porque as filas são menores. Quase nunca me deparei com sexismo, e, quando isso aconteceu, ou dei risada ou mandei a outra pessoa se catar, dependendo das circunstâncias.

    Quando li o texto de Siri Hustvedt, com seu queixume cansativo sobre mulheres que seriam solapadas de maneiras sutis, tive vontade de dar um beliscão na romancista. Ela relata a história estressante de quando um literato francês distinto lhe disse: "Você deveria continuar escrevendo", observação que ela optou por considerar ofensivamente sexista. Posso ouvir claramente a voz de minha mãe: "Simplesmente aceite o elogio". O francês talvez fosse um velho paternalista, mas estava dizendo que ela escrevia bem. Ela deveria ter se alegrado.

    INFANTILIZAÇÃO

    Me irritei ainda mais com Sandi Toksvig, que relata (pelo menos seu relato é divertido) como foi a uma cerimônia de colação de grau para receber um diploma honorário e viu as jovens recém-formadas usando sapatos de salto tão alto que elas se desequilibravam e eram obrigadas a apoiar-se em seus pais. Também estive recentemente em uma dessas cerimônias e vi os sapatos espantosos. Mas nem por isso concluí que as jovens recém-formadas estavam se infantilizando. Se elas quisessem vestir-se como prostitutas para receber seus diplomas de MBA, eu não veria nenhum problema especial nisso. Em meus tempos era possível ser CDF ou vadia, mas não as duas coisas.

    O ensaio de Toksvig é acompanhado por uma ilustração de Posy Simmonds, desenhada com humor espirituoso e detalhes deliciosamente precisos. Só que aqui, também, a mensagem é pesada. O salto de 25 centímetros fica ao lado de um desenho de um sapatinho chinês minúsculo, próprio para uma mulher de pés amarrados.

    Ao longo de todo o livro, as palavras das feministas de hoje são moderadas pelos dizeres mais animados de feministas que já morreram. Minha página favorita é dedicada a uma frase de Dorothy Parker: "A primeira coisa que faço pela manhã é escovar os dentes e afiar a língua".

    As línguas de algumas das colaboradoras em "Fifty Shades" ficaram cegas por excesso de uso. Apenas o texto de Jeanette Winterson sobre como a pornografia destrói o amor é escrito com língua tão afiada que me cortou. E então, finalmente, senti raiva.

    Tradução de CLARA ALLAIN.

    lucy kellaway

    Escreveu até julho de 2017

    É editora e colunista de finanças do 'Financial Times'.

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