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    Lucy Kellaway

    Opinião: Nove lições valiosas que um emprego horrível pode ensinar

    LUCY KELLAWAY
    DO "FINANCIAL TIMES"

    28/10/2013 15h02

    Certa noite da semana passada, eu estava na cozinha preparando um chá quando meu filho entrou. Eu mal o vejo desde que ele terminou a escola, na metade do ano, e arranjou emprego em uma lanchonete, durante o dia, e como atendente de um restaurante delivery, no período noturno.

    Perguntei como ele estava.

    Ele respondeu que tudo bem.

    Perguntei também se aqueles empregos haviam ensinado alguma coisa de interessante a ele sobre o trabalho, a vida –sobre qualquer coisa, de fato.

    Ele respondeu que sim: tinha aprendido que gosta de ser pago.

    Minha pergunta surgiu por conta de um post recente no blog da "Harvard Business Review" cujo argumento era o de que empregos humildes ensinam mais aos jovens sobre o mundo do trabalho do que o tempo que passam em estágios não remunerados bacanas, por exemplo em uma produtora de cinema. O autor do post, hoje professor de Direito, trabalhou como ajudante de garçom e faxineiro –empregos que, segundo ele, lhe ensinaram lições que vêm lhe servindo muito bem desde então.

    E eu estava começando a perceber a sensatez de seu argumento. A primeira lição importante entregue ao meu filho pelo restaurante de entregas não podia ser mais correta: * receber pelo trabalho que você faz é ótimo. É uma pena que a maioria de nós esteja tão acostumada a isso que tendemos a nos esquecer de sentir alegria quando chega o dia do pagamento.

    O que mais ele havia aprendido com o trabalho? Ele me disse que pensaria a respeito e me responderia mais tarde; precisava sair ou chegaria atrasado para o turno da noite. Isso me ofereceu uma segunda revelação: * quem ganha sete libras por hora precisa de uma jornada de trabalho mais longa até mesmo que a dos executivos de bancos de investimentos, se planeja ganhar qualquer dinheiro.

    E isso o conduziu a uma terceira descoberta: * ganhar salário mínimo torna qualquer pessoa agradecida por viver em uma casa onde conta com uma cama quentinha e uma geladeira (mais ou menos) cheia. Para quem não conta com isso, é um jogo de sobrevivência, e meu filho não consegue entender como as pessoas conseguem sobreviver com um salário dessa ordem.

    Mais tarde naquela noite, recebi uma mensagem de texto que ele enviou do restaurante, contando que não havia muito movimento e que podíamos conversar. Fui até lá e o lugar estava inteiramente vazio –a única pessoa presente era meu filho, desocupado no caixa. Isso resultou em uma quarta revelação: * fazer nada é muito chato. É a pior coisa do mundo. Você fica tão letárgico que, quando as coisas se aceleram mais tarde, mal consegue se forçar a agir.

    Perguntei se o trabalho não o estava ensinando a ser profissional –pergunta mais capciosa, impossível.

    Ele respondeu que obviamente. E com isso surgiu a lição número cinco: * você precisa ser pontual. E confiável. Não pode falar palavrões, dar as costas aos fregueses ou responder com rudeza mesmo que eles sejam rudes. Se você estiver de ressaca, precisa chegar ao trabalho na hora certa, e fingir que está tudo bem.

    Ao ouvi-lo recitar essa lista, me ocorreu uma percepção: * um restaurante de fast food é um excelente curso de aperfeiçoamento, e obteve sucesso em áreas nas quais 18 anos de esforços liberais de orientação materna e sete anos de escolas privadas absurdamente caras não parecem ter apresentado resultados.

    Ainda assim, embora ele tenha aprendido a ser polido para com os clientes, não aprendeu a gostar disso. De fato, o que ele descobriu foi que * "atender clientes pode ser chato demais. Alguns são amigáveis, mas muitos nem mesmo nos olham. E depois de algum tempo isso incomoda".

    Meu filho olhou ansioso para o relógio, e disse que o patrão estava para chegar. Eu respondi lembrando a ele ter dito que gostava do patrão.

    Ele deu de ombros. "O patrão é OK. No começo, saíamos para uma bebida no final do turno, mas ele é que decide quantas horas trabalho, e me culpa por coisas como não encomendar novos cardápios, ainda que isso não seja minha função. Por isso, sair para beber com ele é esquisito".

    Em outras palavras, ele aprendeu a lição valiosa número oito: * ser amigo do chefe nunca é boa ideia.

    Antes de sair, contei a ele que as lições que estava aprendendo não tinham coisa alguma em comum com as do sujeito do blog da "Harvard Business Review", cujos empregos humildes lhe ensinaram grandes verdades sobre a humanidade –a de que a maioria das pessoas quer se orgulhar de seu trabalho, a de que todos temos grandes sonhos. Perguntei a opinião dele sobre isso. Ele respondeu que é difícil se orgulhar do trabalho quando o restaurante vai mal e o gerente nem liga. Mas mesmo quando a gerência é competente, ainda há muita gente inútil e resmungona, o que conduziu à nova lição: * "É horrível trabalhar com chorões".

    E o que deveria ser feito quanto a eles, perguntei. Meu filho me olhou como se eu fosse idiota.

    "Eles devem ser despedidos, p_a", foi a resposta –ele parece ter esquecido a lição cinco.

    E quanto aos sonhos? "É", ele respondeu, "todo mundo aqui tem sonhos".

    Com algum medo da resposta que poderia receber, perguntei quais eram os deles. Para meu alívio, ele respondeu: "Entrar na universidade e conseguir um emprego decente".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    lucy kellaway

    Escreveu até julho de 2017

    É editora e colunista de finanças do 'Financial Times'.

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