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    Lucy Kellaway

    Opinião: Ânimo: esta é uma era dourada para quem trabalha em escritório

    LUCY KELLAWAY
    DO "FINANCIAL TIMES"

    20/01/2014 12h08

    O que é a pior: a vida no escritório hoje ou 50 anos atrás? Quando essa pergunta me foi proposta por um pesquisador de TV, não precisei pensar por mais de dois segundos antes de apresentar minha resposta.

    Obviamente, as coisas são piores hoje. Não temos mais segurança no emprego. Nossas jornadas de trabalho são intoleravelmente longas. Só nos desligamos ao dormir, e verificamos nossos e-mails até enquanto estamos escovando os dentes. O resultado é estresse, exaustão e alienação.

    Refletindo sobre minha resposta, mais tarde naquele dia, percebi que tinha dito uma grande besteira. As queixas de que está tudo indo por água abaixo representam uma bobagem populista. A vida profissional em 2014 não é pior do que era em 1964; para os profissionais privilegiados, ao menos, ela é melhor do que foi em qualquer momento do passado.

    Se não nos sentimos felizes no trabalho, bem... na verdade deveríamos, por pelo menos nove motivos diferentes.

    Para começar, em 1964, eu não poderia exercer uma profissão liberal, porque sou mulher. A vida profissional de metade da população educada melhorou imensuravelmente.

    Para a outra metade, ela também melhorou, já que a maioria dos homens (excetuados uns poucos fanáticos) certamente acredita que ter mulheres por perto torna as coisas, se não mais
    civilizadas, ao menos mais variadas.

    Segundo, os trabalhos de escritório se tornaram menos tediosos. Todas as tarefas rotineiras são executadas por semicondutores; os negócios estão mudando tão rápido que só as pessoas obtusas podem considerá-los chatos.

    No Reino Unido, os empregos em setores relativamente criativos estão crescendo em ritmo mais rápido do que os empregos mais chatos em ramos como as finanças. E quem pode se sentir entediado quando conta com toda a Internet no bolso para diverti-lo nos ocasionais momentos de tédio?

    Terceiro, a vida de escritório está se tornando mais igualitária - se bem que não tão igualitária quanto as empresas gostariam que pensássemos. Há menos deferência automática aos superiores; os subordinados que têm ideias já não são deliberadamente desencorajados a expressá-las.

    O comportamento nos escritórios também mudou para melhor. Não é verdade que mais competição cria mais crueldade: de fato, os lugares mais desagradáveis de trabalho são as grandes universidades, onde os professores titulares se comportam atrozmente não devido ao excesso de concorrência, mas à falta dela.

    A lei das probabilidades determina que sempre haverá alguns misantropos à espreita em torno da área do cafezinho no escritório, mas a vida deles é mais difícil hoje do que no passado. Descortesias gratuitas estão fora de moda - intimidação, homofobia, sexismo e racismo não são apenas desaprovados socialmente: são ilegais.

    A quinta melhora é que já não temos (ao menos no Reino Unido) tantos amadores e incompetentes entre os nossos superiores hierárquicos. Quando comecei a trabalhar na City de Londres, no começo dos anos 80, uma minoria significativa dos meus colegas de trabalho nas finanças eram burros e alcoólatras.

    Nas duas últimas décadas, o Reino Unido elevou as qualificações requeridas, e a qualidade dos seus quadros executivos é hoje muito superior.

    Sexto, o lado físico da vida de escritório nunca foi tão bom. Os edifícios são bem iluminados e espaçosos. As cadeiras são confortáveis. O sujeito sentado ao seu lado não fuma dois maços de cigarro por dia. E há cappuccinos, sanduíches finos e outras comidas saborosas ao seu alcance - uma melhora incomparável ante o café instantâneo e as salsichas com purê em pó servidos nos refeitórios de escritórios do passado.

    Até o percurso para o trabalho melhorou. Em Londres, o metrô hoje funciona melhor do que no passado, e em geral é possível chegar ao trabalho sem perder algum tempo preso em um túnel. Melhor ainda, você não precisa fazer o caminho de casa ao trabalho na hora do rush: pode começar a trabalhar em casa por e-mail e chegar ao escritório só mais tarde.

    A flexibilidade que a tecnologia nos conferiu é a melhor de todas as melhoras. Mas se trata de uma mudança tão fundamental que às vezes é fácil esquecer o quanto a vida era ruim antes que ela surgisse.

    Por outro lado, é verdade que a segurança no emprego se foi, e que ninguém mais pode contar com um emprego para a vida toda. Mas esse parece ser um problema contestável: quem quer ter o mesmo emprego a vida toda quando a vida se tornou tão longa?

    Há apenas dois aspectos dos escritórios modernos que enfrento dificuldade para apresentar como melhora: o primeiro é o estresse no trabalho, algo de que 80% dos trabalhadores dos Estados Unidos alega sofrer. Mas esse conceito mal havia sido inventado nos anos 60, de modo que é difícil fazer uma comparação. É bem possível que as pessoas considerassem seus trabalhos cansativos e frustrantes, então - mas que não fizessem tamanho escândalo a respeito.

    O segundo mal indisputável da vida de escritório moderna é que nunca nos desligamos, e insistimos em enviar e-mails às 23h - o que é ineficiente, nada saudável e em geral bastante desnecessário. Se você é cirurgião cardíaco, precisa estar acessível durante a noite caso algum paciente sofra uma parada cardíaca, mas o resto de nós não se enquadra a essa descrição.

    E se não somos capazes de desligar nossos malditos aparelhos de comunicação em casa, parece meio patético atribuir a culpa por isso à vida de escritório. A culpa certamente é nossa.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    lucy kellaway

    Escreveu até julho de 2017

    É editora e colunista de finanças do 'Financial Times'.

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