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    Lucy Kellaway

    Opinião: Empresas devem trocar máquinas de venda por refeitórios

    LUCY KELLAWAY
    DO "FINANCIAL TIMES"

    27/01/2014 13h00

    No final de cada dia, os seguintes itens podem ser encontrados sobre minha mesa de trabalho: um grande copo de papel contendo um resíduo de leite frio e amarronzado; um saco de papel com marcas de gordura e migalhas de danish [pão semelhante a um croissant]; pelo menos uma lata vazia de Coca Diet; um plástico usado previamente como embalagem de um sanduíche de ovo e agrião; uma casca de banana; e um pacote vazio de bolinhas de chocolate Maltesers.

    Por mais de uma década, me dediquei a jantar à la escrivaninha, e defendia a prática contra os ataques de quem quer que a criticasse. Gosto de comer sentada à minha mesa de trabalho.

    As visitas frequentes às máquinas de venda automática de comida pontuam o dia de trabalho e servem igualmente como recompensa, consolo e como injeção de energia.

    Na semana passada, desisti disso tudo. Quem visitasse meu escritório não encontraria traços de comida sobre minha mesa; apenas uma xícara de porcelana branca, lavada e deixada ao lado do teclado.

    Essa transformação radical surgiu como resultado de ler uma coluna de AA Gill, um crítico de gastronomia, na qual ele propunha uma nova forma de dieta.

    Você pode comer tudo que quiser, na quantidade que quiser, mas precisa obedecer as seguintes regras sobre como fazê-lo:

    1. Não coma coisa alguma que não possa ser comida com garfo e faca.

    2. Sente-se a uma mesa posta, com toalha, louça e de preferência diante de uma pessoa que também esteja comendo.

    3. Não coma só porque está com fome; coma porque é hora do almoço.

    4. Nunca coma em pé.

    5. Nunca coma nada usando pratos ou talheres de plástico ou papel.

    6. Nunca coma em uma sala em que haja uma tela qualquer ligada.

    7. Todas as refeições devem ter pelo menos dois pratos, exceto o café da manhã.

    Em casa, eu sempre mais ou menos segui essas normas. Não existe muita coisa na vida em que eu ainda acredite incondicionalmente, mas refeições familiares compartilhadas - com todo mundo sentado à mesa, e a mesa posta com antecedência - são uma delas.

    Mas se essa dieta me parece tão natural em casa, por que abandoná-la no minuto em que chego ao escritório? O detrito em minha mesa demonstra que eu violo cada uma das normas todos os dias.

    Violo até mesmo a regra número quatro, e como um ou dois Maltesers no caminho de volta da máquina de chocolates para minha mesa.

    Você pode dizer que não é minha culpa, e que são os escritórios que incitam a um comportamento pouco civilizado na hora de comer.

    LEITE EM JARRAS

    Minha mãe - que sempre acreditou que leite deveria ser colocado em jarras para ser servido - não está lá para me aconselhar, e vivo cercada de colegas que passam, o dia mascando ou sorvendo alguma coisa.

    Decidi que tentaria determinar que cara teria a vida do escritório se todos seguíssemos as regras de Gill.

    A primeira mudança é que a pessoa teria de tomar o café da manhã em casa - o que representa melhora instantânea, já que a cozinha de casa é o lugar ideal para preparar um café da manhã, e chegar ao escritório depois de um mingau com torradas é bem melhor do que começar o dia com um danish gorduroso.
    No meio da manhã, preparo um pote de café no escritório, ofereço aos colegas e bebo o meu em uma xícara de porcelana.

    Isso é tão agradável - café melhor, preço mais baixo e uma chance de ser mais sociável - que me levou a imaginar o que estávamos pensando durante esses anos todos em que bebemos nossos "lattes" de um copo de papel com um buraquinho para o canudo, como bebês com suas mamadeiras.

    No almoço do primeiro dia, fui com um colega comprar um sanduíche e frutas, que comemos sentados a uma mesinha em meu escritório. Estava saboroso, mas a embalagem era uma violação das normas, e eu comi sem talheres.

    Por isso, no dia seguinte visitei o refeitório do edifício, onde não comia há anos. Lá, almocei comida quente, com pratos de vidro, garfo e faca - que eu também usei para comer minha banana, o que estranhamente parece ter melhorado o sabor da fruta.

    A comida não era ótima, mas a parada no meio do dia, a conversa obrigatória com os colegas e a sensação de superioridade que ser civilizado propicia mais que compensaram essa deficiência.

    No meio da tarde, abri mão dos Maltesers, e nem senti falta. Tampouco senti falta da Coca Diet. Em lugar, preparei um chá para o pessoal e, pensando em minha mãe, até coloquei o leite em uma jarra.

    O motivo para que tudo tenha sido tão fácil é que a comida em si é facilmente esquecível; o que não é esquecível é a antecipação e o ritual.

    O conhecimento de que eu comeria do modo correto no almoço tornava os momentos de antecipação mais agraváveis. E o ritual de esquentar água para o chá faz bem à alma.

    Diante dos benefícios dessa nova dieta - que é cordial, civilizada, saudável, barata, ordeira e gera poucos resíduos -, a única desvantagem é a desagradável sensação de superioridade moral que ela propicia.

    Com a intolerância que caracteriza os convertidos recentes, eu tenho olhado feio para o cara que senta do meu lado, comendo croissants de queijo sem desviar os olhos da tela do computador.

    Até o momento, minha desaprovação não criou muitos discípulos. Mas a dieta é tão boa que creio que talvez coerção seja necessária.

    As empresas deveriam se livrar de suas máquinas de venda de comida e recolocar o refeitório no centro da vida de escritórios, da mesma forma que a cozinha é o centro da vida doméstica.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    lucy kellaway

    Escreveu até julho de 2017

    É editora e colunista de finanças do 'Financial Times'.

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