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    Lucy Kellaway

    Opinião: O Grande Irmão pode me espionar no trabalho sempre que quiser

    LUCY KELLAWAY
    DO "FINANCIAL TIMES*

    24/02/2014 16h00

    Na semana passada, o "Financial Times" publicou uma reportagem assustadora sobre como a tecnologia está sendo usada pelas empresas para nos espionar no trabalho.

    O artigo descreve como sensores podem ser escondidos, de modo fácil e a baixo custo, em crachás e móveis de escritório, para rastrear onde estamos, com quem conversamos e que tom de voz adotamos.

    Os departamentos de recursos humanos podem descobrir quanto tempo demoramos para chegar ao trabalho, e como nos comportamos ao chegarmos.

    Em lojas, centrais de atendimento telefônico e até mesmo nas salas de reunião dos conselhos, esses dados podem ser usados para decidir quem será promovido e quem será demitido.

    Eu estremeci ao ler o texto – e o mesmo se aplica aos demais leitores do "Financial Times". Eles comentaram coisas como "1984 agora chegou! A privacidade foi por água abaixo!"

    Mas pensando melhor, a chegada ao Grande Irmão ao mundo das empresas não é necessariamente uma má coisa. Ser constantemente monitorado por dispositivos invisíveis pode parecer assustador, mas não estou certo de que seja mais assustador do que vigilância menos frequente por seres humanos visíveis.

    Sob o sistema vigente, somos observados de maneira atabalhoada e não científica por superiores que talvez já estejam decididos a nosso respeito, com base em muito poucos indícios.

    O azar dispõe que quando você faz algo de bom, ninguém percebe, mas no minuto que faz algo de ruim, termina apanhado. Lembro-me de um chefe que, de vez em nunca, caminhava pelo escritório observando os subordinados.

    E sempre que ele aparecia sem avisar, eu estava fazendo uma lista de compras ou falando com minha mãe ao telefone. A vigilância dele não melhorava meu comportamento, e piorava minha sensação de injustiça. Ser observada o tempo todo -o que colocaria a lista de compras do contexto de um comportamento de outra forma diligente - teria sido uma vasta melhora.

    Na maioria dos escritórios, uma ampla gama de instrumentos em geral inúteis e canhestros são empregados para avaliar desempenho, entre os quais "matrizes de competência", entrevistas de avaliação e testes psicométricos.

    Somados, eles são tão pouco efetivos que, de acordo com uma deliciosa pesquisa da Universidade de Catania, as empresas se sairiam igualmente bem promovendo pessoas ao acaso.

    Se defendemos a meritocracia, devemos igualmente defender qualquer coisa que nos permita medir mérito de maneira mais precisa.

    Embora os dados recolhidos pelos novos sensores sejam quase certamente brutos demais para oferecer grande ajuda agora, não vejo motivo para que, com o tempo (mas provavelmente logo), não venhamos a descobrir exatamente que idiossincrasias de comportamento são cruciais para o bom (ou mau) desempenho, e a encontrar uma maneira decente e objetiva de avaliá-las.

    A Steelcase, que produz alguns dos sensores tão desprezados pelos leitores do "Financial Times", espera que um dia eles sejam usados não só para fiscalizar os subalternos mas os conselhos.

    Embora seja difícil imaginar que o conselho de uma empresa permita voluntariamente o uso de uma arma como essa contra seus integrantes, seria ótima ideia que o fizesse.

    CONSELHEIROS

    No momento, monitorar o comportamento dos conselheiros de uma empresa é inútil - observadores externos o fazem periodicamente, mas a situação política em geral é tão delicada que é quase impossível para eles fazer diferença.

    Se, em contraste, todos os integrantes do conselho estivessem sob escuta, uma pessoa que tagarelasse interminavelmente, baixando o pulso dos colegas, seria fielmente denunciada pela tecnologia.

    Da mesma forma, uma pessoa que falasse apenas ocasionalmente mas cujas declarações despertassem o interesse dos colegas poderia se destacar.

    A objeção é que monitorar o comportamento nos escritórios mataria a confiança e a espontaneidade, e faria de todos nós robôs. Mas desde que todos soubessem que estão sendo monitorados e compreendessem para que fins, não vejo por que a ideia deva ser tão aterrorizante - exceto talvez para aqueles que intimidam, gritam e assediam os outros, e que estejam conseguindo se safar apesar disso.

    Longe de tornar o trabalho menos civilizado, a chegada do Grande Irmão poderia tornar o ambiente mais civil. A vida de escritório se tornaria mais transparente e menos política. E os executivos ficariam livres do trabalho de policiamento e poderiam desempenhar sua função mais importante: a de que ajudar as pessoas a trabalhar melhor.

    Alguns problemas teriam de ser resolvidos. Para começar, monitoração extensa demais talvez seja ilegal. Também seria preciso garantir que os trabalhadores não fossem capazes de subverter o processo - e que gestores malvados não se ocupassem principalmente de manipular os dados para fins pessoais dúbios.

    Acima de tudo, para que o sistema funcione seria necessário que as pessoas tivessem alguma fé no regime que o implementou. Mas, se você não tiver fé alguma no regime, estará ferrado de qualquer jeito.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    lucy kellaway

    Escreveu até julho de 2017

    É editora e colunista de finanças do 'Financial Times'.

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