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    Lucy Kellaway

    Opinião: Como não naufragar na maré alta da familiaridade

    LUCY KELLAWAY
    DO "FINANCIAL TIMES"

    26/05/2014 15h41

    Certo dia, em 1995, quando as linhas fixas de telefonia e os selos de correio viviam seus últimos dias de glória, liguei para o serviço de lista telefônica. Naquela época, se você não sabia um número de telefone, discava 192 e um ser humano procurava o número e o lia para você. Na ocasião em questão, a mulher do outro lado linha respondeu com "lista, Michelle falando".

    Perplexa, perguntei por que ela havia me dito seu nome. Ela respondeu que se tratava de uma nova política com o objetivo de tornar o serviço mais amistoso. "Que vulgaridade", pensei comigo mesma. "Que familiaridade gratuita. Que coisa mais americana". Liguei o imenso monitor de tubos de raios catódicos que repousava sobre minha mesa e escrevi uma coluna para protestar que eu não queria contato pessoal. Só queria um número de telefone.

    Depois de quase duas décadas tentando flutuar na maré cada vez mais alta da familiaridade, já não me incomodo tanto quando pessoas como Michelle se apresentam a mim. Há motivos mais sérios de preocupação.

    Outro dia comprei um vestido no eBay. Quando chegou (grande demais e meio cafona, o que é sempre um risco ao comprar roupas pelo eBay), encontrei um cartão no pacote. "Esperamos que você tenha um ótimo feriado e aprecie o vestido que comprou", o cartão dizia. "Tenha uma ótima semana e esperamos vê-la de novo no futuro próximo. Simon e Laurie". As coisas não andam muito boas, pensei, quando Simon e Laurie, a quem não conheço e de quem nunca ouvi falar, são mais solícitos sobre minha felicidade e bem-estar do que as pessoas de minha família.

    Passados dois dias, eu estava online tentando cancelar minha assinatura da "Sky Go" e me vi envolvida em um "Live Chat" que envolvia digitar palavras em uma bolha. "Olá, Lucy, como vai você?", Ajay digitou. "Bem", eu digitei em resposta. "Beleza!;) Tenho certeza de que poderei ajudá-la com isso".

    Depois de uma nova tempestade de emotiocons e declarações de disposição de ajudar, a verdade é que ele não conseguiu resolver o problema. "Espero que isso tenha ajudado;) Até mais", ele se despediu.

    O diálogo até que foi tranquilo se comparado a um chat postado no Reddit por um usuário do Xbox. Ele foi atendido por alguém chamado/a Kelly, que a certa altura digitou: "Você é uma pessoa tão compreensiva. Eu queria poder lhe mandar um café ou Mountain Dew por isso!" Sem dúvida, Kelly - como Michelle - achava que estava prestando um serviço mais pessoal. Na verdade, seu comportamento era quase sinistro.

    Há 20 anos, a falsidade de cumprimentos como "tenha um bom dia" costumava irritar. Mas agora até mesmo "tenha um bom dia" parece morno, já que o mínimo que passamos a esperar foi que nos desejem um dia "espetacular". Da mesma forma, alguém dizer "sem problema", o que quase sempre é inútil porque a verdade é que na maioria das vezes existe um problema, se tornou insuficiente e a nova norma passou a ser "sem problema nenhum", ou "NPW", na sigla em inglês - para evitar o esforço de digitar três palavras inteiras.

    Existe uma regra para a familiaridade empresarial que as empresas não parecem ter descoberto. A menos que ela seja solicitada por um cliente que se comporta com igual familiaridade, é uma péssima ideia. A familiaridade criada por alguém seguindo um roteiro é especialmente ruim, já que até o mais idiota dos clientes consegue perceber a diferença entre familiaridade real e fingida. Quando uma pessoa não está conseguindo resolver seu problema, ou quando ela está tentando lhe vender alguma coisa não solicitada, a familiaridade é ainda pior. Todos os e-mails de pessoal de relações públicas que começam com frases do tipo "espero que esta mensagem a encontre muito bem", ou "espero que você esteja desfrutando desse clima excelente" são apagados instantaneamente; nunca leio o que vem a seguir.

    A familiaridade só é aceitável quando parece natural e não quando ela é gritantemente interesseira. Simon e Laurie são um tantinho incontinentes em seus amistosos votos, mas tão amadores que a mensagem deles me pareceu terna. Para as grandes empresas, conglomerados sem rosto, é muito mais difícil encontrar um toque pessoal.

    A J Sainsbury vem tentando ensinar as pessoas que trabalham em suas redes sociais a praticar a familiaridade da maneira correta. Meses atrás, o tweet de um cliente dizia que "tentei comprar um peixe no @sainsburys mas ele não tinha um código de barras!" A companhia respondeu: "O peixe deu uma sardinha rápida, ou alguém conseguiu robalo. Desculpe a perca! David". Mais trocadilhos sobre peixes se seguiram, e a companhia ficou tão feliz com a situação que divulgou um press release contando a história.

    Em outra ocasião, uma mulher enviou um tweet de um estacionamento do Sainsbury's para dizer que não podia sair do carro porque seu bebê estava dormindo, e ela estava louca por um café. A equipe da rede social descobriu onde ela estava e mandou um funcionário levar café até o carro. Outra história fofa. O toque pessoal triunfa, nas redes sociais.

    Há um probleminha, porém. Se todos pedirmos café de graça no estacionamento, não o receberemos. O ponto primário para uma empresa não é fazer amizade com pessoas no Twitter ao fornecer produtos de graça, mas sim vender os produtos que elas querem comprar.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    lucy kellaway

    Escreveu até julho de 2017

    É editora e colunista de finanças do 'Financial Times'.

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