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    Lucy Kellaway

    Opinião: Por que falamos mais sobre papel higiênico do que sobre empregos

    LUCY KELLAWAY
    DO "FINANCIAL TIMES"

    21/07/2014 12h00

    Na semana passada, eu estava fazendo compras online e tentando pedir papel higiênico quando em lugar de clicar "colocar no carrinho de compras", cliquei por engano em "resenhas".

    E com isso ingressei por acaso em um mundo que mal sabia existir. Nos dois últimos anos, centenas de compradores vêm informando anonimamente o site da Ocado sobre o que eles acham do papel higiênico à venda.

    Algumas das resenhas são bem básicas: "Esse rolo de papel higiênico é MUITO fino e frágil", ou "ótima qualidade, pelo preço". Outras são um pouco mais avançadas: "Você pode usar a embalagem como forro para o cestinho de lixo do banheiro". Ou completamente incompreensíveis, como "a qualidade é boa, mas às vezes meio 'empoeirada'".

    Ler as resenhas envolve pesado investimento de tempo e esforço, e agora significa que preciso acrescentar poeira no papel higiênico à minha lista de preocupações, mas serve a um modesto propósito econômico.

    A Ocado oferece mais de 60 tipos de papel higiênico, e diante de uma gama tão absurdamente ampla de escolhas seria útil saber que os compradores não ligam muito para o Triple Velvet, um produto luxo, mas adoram os rolos superdimensionados da Cushelle.

    Suspeito, porém, que o ponto principal de resenhar produtos como esses seja o estranho prazer que as pessoas parecem obter ao fazê-lo. É como se o tempo que economizamos por não precisarmos mais caminhar com nossos carrinhos pelo supermercado seja dedicado em lugar disso a expressar opiniões sobre cada um dos itens comprados.

    Nada é tão básico que não mereça comentário, nem mesmo selos de correio. "A Ocado os coloca em um belo envelope, para que você não os perca enquanto faz compras", escreve um comprador, enquanto outro tenta algo de mais divertido: "Usei esse produto no passado, mas confesso que me decepcionei por ele não ter funcionado quando o grudei em um e-mail".

    EMPREGOS

    Embora as pessoas se sintam compelidas a escrever resenhas sobre itens de consumo cotidiano, elas são muito mais reticentes quando é hora de fazer algo que poderia ser bastante mais útil - escrever resenhas sobre seus empregos.

    De fato, quase duas vezes mais pessoas escreveram sobre o Waitrose Essential Toilet Tissue no site da Ocado do que se inscreveram no Glassdoor - um serviço que desempenha para o emprego o mesmo papel que o TripAdvisor desempenha quanto às férias -para nos contar como é trabalhar para a Ocado.

    Isso é tanto uma vergonha quanto um enigma. As experiências de atuais e antigos funcionários deveriam ser a coisa mais importante a considerar quando estamos selecionando uma empresa na qual trabalhar.

    Mas a despeito do estímulo do site a que as pessoas escrevam sobre suas experiências, apenas uma pequena proporção dos funcionários de grandes companhias parece desejar revelar ao mundo qualquer coisa sobre seu trabalho.

    EXPLICAÇÕES

    A explicação mais óbvia é o medo. Ainda que as resenhas sejam anônimas, e ainda que os sites jurem que jamais revelarão os detalhes dos usuários, as pessoas ainda podem se preocupar com a possibilidade de que, se revelarem que sua empresa é uma baderna, venham a sofrer represálias mais severas do que as que sofreriam, por exemplo, ao detonar o Moist Toilet Tissuer Wipes da Andre's.

    A segunda é que, no caso dos empregos, diferentemente dos papéis higiênicos, há muitos acertos de conta por realizar, o que significa que pode ser um erro levar a sério o que está escrito. Na semana passada, um leitor me enviou um e-mail alertando sobre a página do Glassdoor quanto a uma pequena companhia financeira.

    Diversos funcionários e ex-funcionários haviam postado resenhas espetacularmente negativas, falando da "cultura psicopática" e do "tratamento horrível a todos". A única coisa que admiravam era o café grátis e o humor negro dos colegas de trabalho.

    Poucos dias depois que essas críticas foram postadas, surgiu uma profusão suspeita de resenhas positivas, com classificação quatro estrelas, todas escritas a curto intervalo umas das outras. E elas foram seguidas por uma nova resenha atribuindo apenas uma estrela à companhia, seguida do conselho aos dirigentes: "Percam menos tempo escrevendo falsas resenhas".

    Quando observo as 731 resenhas postadas sobre meu empregador, a Pearson (controladora do "Financial Times"), as coisas são bem menos extremas.

    Alguns comentários me parecem injustamente negativos: "Os gestores tratam o pessoal como operários". Algumas são injustamente positivas: "As pessoas e o ambiente são fenomenais". Mas as demais, entre as quais "gestores sufocantes, preocupados demais com formalidades", não parecem descrever a empresa em nada.

    Isso me conduz ao terceiro motivo para que as resenhas online sobre empregos jamais terão o poder das resenhas sobre produtos de supermercado. Meu papel higiênico é igual ao seu papel higiênico - presumindo que nós dois escolhamos Waitrose Essential.

    Mas meu trabalho não é o seu trabalho, ainda que nossos holerites possam conter a mesma descrição de cargo. O meu depende da pessoa a quem me reporto e das pessoas com quem colaboro, e do que faço diante da tela do meu computador.

    Por isso, minha resenha sobre meu trabalho, que seria algo como "gente inteligente, trocamos piadas e doces, mas tenho de desenvolver ideias sozinha", não teria relevância praticamente nenhuma para qualquer outra pessoa, exceto eu.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    lucy kellaway

    Escreveu até julho de 2017

    É editora e colunista de finanças do 'Financial Times'.

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