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    Lucy Kellaway

    Opinião: Perder o medo pode ser libertador - e perigoso

    LUCY KELLAWAY
    DO "FINANCIAL TIMES"

    10/11/2014 11h26

    Nos últimos meses, percebi algo estranho sobre mim. Não me sinto mais assustada. Durante toda a minha vida profissional, sempre tive medo. Medo de fracassar. Medo de parecer idiota. Terror de falar em público. Temor de não ser boa o bastante. E acima de tudo, paralisia e pânico diante da possibilidade de que as pessoas descobrissem que sou medrosa.

    Se eu traçasse um gráfico comparando medo e idade, o nível inicial seria bastante alto. Quando entrei no mercado de trabalho, aos 21 anos, me sentia aterrorizada porque compreendia não saber coisa alguma; ainda que saber nada me protegesse contra compreender o quanto o trabalho seria assustador.

    Com o tempo, fui ficando ainda mais temerosa, porque percebi que todo mundo mais parecia saber o que estava fazendo. Sempre que começava a perder um pouco o medo, eu me transferia a um novo posto e ele se agravava de novo. As promoções não melhoraram a situação - na realidade, a tornaram pior.

    Em certa medida, ter filhos ajudou, já que parte da ansiedade era canalizada na direção deles e não do trabalho, mas isso em nada mudou o problema subjacente. No entanto, de repente, cerca de 10 anos atrás, meu medo se estabilizou e lentamente começou a recuar.

    A experiência diariamente repetida de fazer as coisas pelo menos adequadamente ajudou um pouco. O que ajudou mais foi fracassar em uma coisa e outra e perceber que isso não mata. E de repente, em algum momento dos últimos dois anos, veio uma virada clara e o gráfico começou a apontar para queda em ritmo acelerado.

    Desde então, venho rapidamente me tornando uma mulher destemida. Se a queda continuar nesse ritmo, em breve terei perdido completamente o medo.

    Agora, quando sou convidada a fazer coisas que antes me aterrorizavam, as faço sem nem pensar duas vezes. Na semana passada, discursei em um jantar no qual havia muitas pessoas importantes e, quando subi ao palanque tive a estranha sensação de que havia esquecido alguma coisa. E então percebi que o que eu havia deixado para trás fora o meu medo.

    Para tentar determinar se outras pessoas sentem a mesma coisa, passei os últimos dois dias andando com uma caneta na mão e convidando pessoas a traçar seus gráficos do medo.

    Minha conclusão provisória é que minha situação se conforma a um padrão. Cada gráfico tem suas diferenças, mas existem características comuns. Muita gente entre os 50 e os 55 anos parece ter experimentado o mesmo afortunado declínio em seu nível de medo quanto ao trabalho.

    Os dois ou três jornalistas com mais de 50 anos com quem conversei e se declararam tão apavorados quando no passado detinham postos tão assustadores que seriam idiotas caso não vivessem em perpétua ansiedade. Quando perguntei ao editor do "Financial Times" se ele vivia em estado pós-medo, sua resposta foi enfática: de jeito nenhum.

    Mas para os demais de nós existem muitos motivos para que percamos o medo, a essa altura.

    Algumas delas são exatamente as razões para que as pessoas tendam a se tornar mais felizes quando passam dos 50 anos. A maior parte de sua carreira já ficou no passado, você é menos ambicioso e uma queda não seria tão longa. Você tem mais segurança financeira, e por isso o terror absoluto de ser demitido já não o afeta muito. Você já fez as pazes com as coisas em que é muito bom - e com aquelas em que não é. E finalmente percebeu que muita gente não é nem de longe tão competente quanto você sempre imaginou.

    A vida pós-medo de certa maneira tem tudo a recomendá-la. Significa que você pode passar tranquilo pela semana de trabalho, sem calafrios de medo. Você dorme melhor, e é em geral mais alegre.

    Mas como funcionário, ser destemido não é tão evidentemente vantagem. Significa que as alavancas que costumavam movê-lo já não funcionam.

    Um dos homens com quem conversei na semana passada era ex-presidente de uma companhia, e ele disse que administrar a turma cinquentona do pós-medo era muito difícil, porque eles são tanto os melhores funcionários quanto os piores. O melhor sobre eles é que sempre se pode confiar em que digam a verdade - e toda organização necessita de algumas pessoas destemidas que o façam.

    Mas a vida pós-medo pode ser um desastre, porque torna as pessoas complacentes e excessivamente confiantes. Esses traços se tornam tanto mais problemáticos quanto mais alto a pessoa suba na hierarquia; se você dirige uma empresa e não teme coisa alguma, você é um perigo para a companhia e deveria ser removido do posto antes que aconteça algo de ruim.

    O medo é a peça vital para manter a vibração das organizações. Não o medo imposto por um autocrata, mas o medo natural de não ser bom o bastante em um dado posto. Essa é a melhor motivação que já encontrei, e a única coisa que me fez trabalhar como uma condenada. É o medo de ser um lixo que me permite escapar de ser um lixo.

    Assim, se um dia eu chegar ao estado pós-medo, o pior dos meus ex-medos pode se provar realidade: deixarei de ser boa no meu trabalho. O que me dá algo de novo a temer. A única coisa a temer é o destemor.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    lucy kellaway

    Escreveu até julho de 2017

    É editora e colunista de finanças do 'Financial Times'.

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