• Colunistas

    Thursday, 16-May-2024 23:04:29 -03
    Lucy Kellaway - Agências de notícias

    Opinião: Big Bang e crise financeira não mudaram os valentões da City

    LUCY KELLAWAY
    DO "FINANCIAL TIMES"

    19/11/2014 18h12

    No começo dos anos 80, passei o ano mais detestável da minha vida profissional trabalhando na sala de operações de câmbio do que era então o Morgan Guaranty, em Londres.

    Era horrendo, por três motivos. Para começar, era um tédio. As moedas subiam, e depois voltavam a cair, mas raramente de maneira que alguém fosse capaz de prever. Segundo, era estressante, porque se você cometesse um erro, podia perder quantias absurdas de dinheiro. Felizmente, eu não merecia confiança suficiente para permitir que operasse sozinha; meu papel, em lugar disso, era ligar para grandes empresas e tentar convencê-las a nos usar para suas operações de câmbio. Mas em geral o que eu fazia era não muita coisa. Ficava lá sentada, assistindo aos operadores que alternavam momentos frenéticos com períodos de ócio.

    E eles eram o terceiro motivo para que o emprego fosse horrendo. Muitos dos operadores eram meninos ambiciosos, toscos, maldosos, sexistas e racistas, que operavam um sistema feudal com uma hierarquia cruel e específica. O cara que operava "cable" (câmbio dólar-libra) era rei, e o sujeito que operava os "exóticos" (moedas de baixo movimento como a coroa dinamarquesa) estava lá para ser alvo de intimidação. Por não ser menino e nem ter antecedentes parecidos com os deles, eu era insignificante demais para merecer mais do que zombarias rotineiras pela minha voz e aparência.

    Ao final de cada dia de rudezas e brutalidade, eles se encaminhavam ao pub para continuar a fazer a mesma coisa. As sessões de bebedeira do grupo se enquadravam em três categorias: "pequenas" (cerca de 1,5 litro de cerveja por pessoa), "médias" (três litros) e "monstro", uma modalidade que acontecia pelo menos duas vezes por semana e terminava invariavelmente em vômito e em cretinices variadas que eles nem mesmo conseguiam lembrar no dia seguinte.

    Na semana passada, fui transportada de volta àquele período quando li as conversas de chat [de operadores de câmbio envolvidos em irregularidades] divulgadas pelas autoridades de Londres e Washington. Pouco importa que nas três décadas transcorridas desde então tenham acontecido o Big Bang da desregulamentação, globalização, a crise financeira, esforços de promoção de diversidade, a adesão ao politicamente correto e uma revolução tecnológica. A cultura do mercado de câmbio continua intocada por qualquer dessas coisas.

    Não estou dizendo que na época os operadores também estivessem manipulando o mercado. Pode ser que o fizessem, pode ser que não: eu era tratada com desdém tão zombeteiro que eles jamais explicaram o que estavam fazendo. Meu palpite é que todos estivessem envolvidos em abusos muito menores - como eu mesmo estava. Parte do meu trabalho era tentar enganar clientes que não dispunham de uma tela da Reuters e levá-los a pensar que a taxa de câmbio era um pouco menos favorável a eles do que de fato era. Era uma manobra perfeitamente legal, mas nada bacana.

    A coisa que mais me lembrou o passado, nas mensagens de chat da semana passada, é a mistura nada civilizada de coleguismo e agressividade: "Não quero que os outros songos do mercado saibam... e mais... ele vai nos proteger como nós protegemos um ao outro?", pergunta um operador. Em outras palavras, o mercado de câmbio é um clube cruel e aconchegante, como era na minha época, e quem não fizer parte dele é automaticamente idiota.

    A macheza da coisa continua tão extrema quanto no passado. "Muito bem, cavalheiros", "bela jogada, mano", "olha lá, filho", e "isso aí, rapaz", dizem as mensagens. A linguagem tem um tom subjacente de violência - "preciso de mais munição". Um operador se vangloria da tramoia usando a expressão "combo boom", que eu não faço ideia do que significa, mas aposto que não foi escrita por uma mulher.

    Em termos gerais, as conversas parecem produto de uma sessão de bebedeira movida a testosterona.

    Um operador escreve, pouco antes da dose das 16h: "Vamos lá", e o colega responde: "yeah, baby", acrescentando "espero que mais gente apareça para detonarmos juntos".

    A coisa do "me orgulho por ser idiota" continua lá, também. Os erros, a falta de pontuação, continuam a ser alardeados como no passado.

    O que surpreende pela inocência, entre as coisas que sobreviveram no mercado de câmbio, é o uso da gíria rimada cockney. Isso desapareceu em todo o resto do país há muito tempo, mas os operadores continuam a dizer : "você já falou com betty [Grable, que rima com cable] ao telefone? Nada aqui. Suba até 60/70 e depois bota pra fder a operação toda".

    Só uma coisa mudou em 30 anos - a abordagem quando ao uso de palavrões. Esses operadores continuam a xingar como no passado. Mas quando digitam seu palavrão preferido, usam só três letras em vez de quatro.

    Isso suscita a fascinante questão da mudança de cultura nos bancos. Os departamentos de fiscalização interna parecem ter obtido 100% de sucesso em fazer os operadores escreverem "fuck" sem a letra "u" ao usar software da empresa, para evitar danos à reputação do banco. Mas não conseguiram treiná-los para evitar atividades ilegais, ou para não se vangloriarem delas on-line enquanto as executam. Em lugar disso os piores impulsos dos operadores de câmbio foram autorizados a se manifestar sem controle, e o resultado é que eles podem detonar e fder os songos de toda parte. Combo boom é um perfeito resumo.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    lucy kellaway

    Escreveu até julho de 2017

    É editora e colunista de finanças do 'Financial Times'.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024