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    Lucy Kellaway - Agências de notícias

    Opinião: Bisbilhotice de colarinho branco cura a vontade de largar tudo

    LUCY KELLAWAY
    DO "FINANCIAL TIMES"

    24/11/2014 11h19

    Encontrei um jornalista que conheço, outro dia, e perguntei como as coisas estavam. Mal, ele respondeu. O jornalista tinha acabado de ver recusada uma promoção, pela terceira vez, e estava se sentindo tão pouco apreciado que havia começado a pensar em largar tudo.

    Mas em seguida ele contou que estava fazendo o que sempre fazia quando estava cansado do seu trabalho: espionar outras pessoas fazendo o trabalho delas.

    Em trens e aviões, ele olha por sobre os ombros dos demais passageiros e lê os e-mails que eles estão enviando e as planilhas em que estão trabalhando, e escuta suas conversas. O resultado é sempre o mesmo –e sempre conclusivo. O que as pessoas costumam fazer ao longo de seu dia de trabalho sempre lhe parece apavorantemente tedioso. Por pior que o jornalismo possa ser, outros empregos são muito, muito piores.

    Pode ser que ele esteja certo, mas há algo mais na situação que distorce o resultado de suas considerações. Não é que o jornalismo seja tão melhor que as outras coisas, mas sim que assistir a alguém fazendo um trabalho de colarinho branco é uma das coisas mais entediantes que existem.

    Na maioria das demais coisas da vida, o caso quase sempre é de "eu quero o que os outros têm". Nos restaurantes, o que as outras pessoas pediram quase sempre parece melhor do que aquilo que você mesmo pediu. Mas quando vislumbramos pessoas trabalhando, o contrário é verdade. Visto de fora, o trabalho de escritório nos deixa muito felizes por não estarmos fazendo o que aquela pessoa está fazendo.

    Isso não vale dizer que nós ocasionalmente - ou até frequentemente - não invejemos os trabalhos dos outros. A importância que uma pessoa parece ter. O panorama visto do 23º andar. O dinheiro. O poder. Os coquetéis depois do expediente. As viagens. A cordialidade. Tudo isso é eminentemente cobiçável.

    Mas o trabalho em si? Nunca.

    Para testar essa teoria, decidi empreender espionagem por conta própria. Na hora do almoço, saí do edifício e passei por cafés e restaurantes próximos, de ouvidos atentos às mesas, com o meu caderninho de anotações abertos. Eis uma amostra das conversas que ouvi:

    "Há dúvidas quanto aos recursos de mensagem no slide quatro", disse um homem no celular ao atravessar a ponte de Southwark.

    "Acabamos de resolver as questões que ainda estavam pendentes, e por isso estamos em ótima forma para o próximo passo", disse outro sujeito na fila de sanduíches do Pret a Manger.

    Mais tarde, perto da estação London Bridge do metrô, um homem disse a outro: "Não acho que ele seja capaz de administrar o que tem na agenda". Ainda mais tarde, no Starbucks, dois homens de terno e com malas de viagem estavam envolvidos na seguinte conversa - Executivo A: "Como você está posicionando a questão do CRM?" Executivo B: "Precisamos criar valor em torno disso".

    A coisa mais estranha sobre minha bisbilhotice não é a natureza tediosa do que essas pessoas estavam dizendo, mas o fato de que seus rostos não exibissem qualquer sinal de tédio.

    De fato, o sujeito que estava conversando sobre CRM parecia quase animado. É evidente que, se você está envolvido, esse tipo de conversa de trabalho tem um estranho charme que lhe é próprio.

    Enquanto eu ouvia a dupla, que havia começado a usar alegremente o termo "materialidade", apanhei uma mulher na mesa por trás da minha dizendo que "usei iogurte grego em lugar de creme fresco, e ficou ótimo".
    Subitamente me animei. Diante da concorrência, esse minúsculo e desanimador fragmento de papo sobre dieta parecia fascinante.

    Mas por que o fascínio? Por que, para quem está observando de fora, a banalidade do iogurte grego parece mais interessante do que a materialidade, que é material por sua própria natureza?

    O primeiro motivo é que o iogurte grego é compreensível. O que mais desanima nas conversas de escritório é que elas são difíceis de entender. O segundo é que, mesmo quando elas são compreensíveis, também são quase sempre abstratas. Em nenhuma das conversas que bisbilhotei era possível arriscar o mínimo palpite sobre o que a pessoa que estava falando de fato fazia. O único termo compreensível que ouvi foi "agenda", e mesmo assim tenho certeza de que aquilo que o sujeito teria dificuldades para administrar não era seu caderno de apontamentos diários.

    E quando eu estava a ponto de voltar ao meu escritório, ouvi alguém dizer que "ele está a ponto de receber um diploma em medicina. Está vendo só?" A conversa atraiu minha atenção, e apurei os ouvidos parta escutar melhor. Queria saber o que é que eu devia estar vendo, mas a conversa parou por ali.

    E isso nem fez diferença, porque eu encontrei minha resposta. O que é infinitamente fascinante quanto aos escritórios são as pessoas que trabalham conosco, acima de nós ou sob nossa direção.

    De outra forma, o trabalho de colarinho branco é como uma versão emasculada e pesadamente regulada de um jogo de Banco Imobiliário. É quase impossível comprar qualquer coisa, quanto mais construir hotéis. Seu trabalho é mexer sua peça pelo tabuleiro, uma atividade que ainda que tediosa e interminável, termina por absorver sua atenção enquanto você a executa. Às vezes você avança mais rápido do que os colegas, e a sensação é boa; às vezes, avança mais devagar, o que é nem tão bom.

    E, se tudo mais fracassar, há sempre as 200 libras que você recebe a cada vez que passa pelo ponto inicial do tabuleiro.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    lucy kellaway

    Escreveu até julho de 2017

    É editora e colunista de finanças do 'Financial Times'.

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