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    Lucy Kellaway

    Cair de bicicleta atrapalha meus esforços para fazer acontecer?

    26/01/2015 11h22

    Na quarta-feira passada, eu estava andando de bicicleta com uma sacola pendurada sobre o guidão. Pedalava a uma boa velocidade quando a sacola balançou e prendeu na roda, e com isso fui arremessada por sobre a frente da bicicleta e caí de cabeça no asfalto.

    Pelo menos foi o que o homem da ambulância disse que aconteceu; meu capacete não me salvou de desmaiar, e por isso não me lembro de coisa alguma.

    Pela metade da tarde, cheguei em casa do hospital, com um impressionante olho roxo, arranhões no rosto e um pulso quebrado não especialmente doloroso, mas fora isso até que bem. O único dano permanente foi sofrido por minha blusa, que teve de ser cortada para ser removida.

    Obviamente é idiota pedalar com qualquer coisa pendurada do guidão. Talvez, pela primeira vez na minha vida, eu aprenda com os meus erros e comece a usar uma cestinha.

    Mas essa não é a moral da história. Na manhã de terça-feira, serei entrevistada para um posto em um conselho.

    Devo me apresentar em um escritório elegante do centro de Londres e tentar convencer o presidente do conselho de uma empresa de que sou a espécie de pessoa cuja companhia ele deseja nas reuniões de conselho - afiadíssima quanto à estratégia, sábia quanto aos riscos e capaz de fazer perguntas pertinentes.

    Acabo de me olhar no espelho e de estudar meu olho inchado, a pele escurecida pela queda, os arranhões vermelhos, o braço engessado e na tipoia, e imaginei se contrataria uma mulher com essa aparência. A resposta imediata que me ocorreu foi não.

    Uma breve busca no Google me garante que, quando o assunto é causar má impressão em uma entrevista de emprego, um olho roxo é pior do que chegar tarde, suando profusamente e com um piercing no nariz.

    Da mesma forma, segundo um estudo da Universidade do Iowa, a coisa mais importante em uma entrevista –especialmente para as mulheres– é um aperto de mão firme. Minha mão direita, com os dedos azulados emergindo do gesso já encardido, não tem como participar de qualquer aperto de mão.

    Eis a questão, portanto: devo adiar?

    Meu instinto me diz para manter a entrevista. Ainda sou capaz de manter uma conversa, em nada pior do que sempre consegui. E posso superar minha aparência de bruxa velha –passar por cima disso seria um teste de caráter. Além disso, não cancelo compromissos. O primeiro sinal de profissionalismo é a pontualidade, e respeitar a agenda dos outros ao não forçá-los a remarcar reuniões.

    Mas passadas 24 horas do acidente, eu já não estava me sentindo tão segura. Os passageiros do trem desviavam o olhar ao me ver. Ao chegar no escritório, eu parecia tão debilitada que o segurança me abraçou e beijou na porta.

    A editora de moda do "Financial Times" me aconselhou a pensar em não ir. Não há como parecer uma mulher poderosa com essa cara de vítima de abuso doméstico. Pode ser sexista, ela explicou, mas é um fato: um homem com o rosto machucado parece durão, enquanto uma mulher com marcas semelhantes parece uma dona de casa que apanhou do marido. Não importa que história eu conte sobre a sacola e a bicicleta, um
    desconhecido sempre suspeitará de um cônjuge abusivo, e não de um asfalto abusivo.

    A única maneira de salvar a situação, ela me disse, seria usar um elegante tapa-olho e um tailleur apurado. Quando apontei para o fato de que não há como vestir um blazer com o braço na tipoia, ela sugeriu que eu usasse uma capa.

    Não acho que ela tenha sacado o ponto: vou ser entrevistada para um posto no conselho de uma empresa, e não para um papel em uma peça sobre o almirante Nelson. E, a despeito dos conselhos dela, decidi ir de qualquer jeito.

    Se não fosse a entrevista para o posto no conselho e o meu olho roxo, eu estaria me sentindo muito bem para comigo. Aos 10 anos de idade, tinha o mórbido desejo de quebrar alguma coisa e usar gesso, porque isso dispensava os alunos das aulas de educação física e lhes valia simpatia desproporcional da parte dos colegas.

    Passadas algumas décadas, consegui o que queria, e é ainda melhor do que eu imaginava. Recebi flores, e as pessoas passam pela minha sala para perguntar se quero que me tragam comida.

    Recebi agradecimentos por ter ido ao escritório e fazer meu trabalho. Fiquei pensando em todos os momentos nos quais fui trabalhar em estado muito pior: por insônia, ansiedade, insegurança ou até depressão. Ninguém conseguia ver o que me feria, e a única coisa que pareciam desejar quanto a mim era que eu mudasse menos de humor.

    O único lado negativo do gesso é que você tem de responder a perguntas constantes sobre o que aconteceu. Aprendi três coisas até agora.

    Primeiro, os ciclistas me veem como heroína, e os não ciclistas como idiota. Segundo, dizer "acidente de bicicleta" é bem mais fácil do que explicar (como aconteceu a dois colegas recentemente) que você caiu ao andar de salto alto ou se feriu pulando em um castelo inflável.

    Por fim, o melhor é manter a explicação o mais curta que eu puder, e jamais admitir voluntariamente que a culpa foi minha. Espero respeitar essa norma, especialmente na terça-feira. Mesmo que o presidente do conselho consiga reprimir suas suspeitas de que sou uma mulher espancada, ele talvez não queira contratar, para a avaliação dos riscos que uma empresa corre, alguém que se provou tão incompetente na administração de seus riscos corporais.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    lucy kellaway

    Escreveu até julho de 2017

    É editora e colunista de finanças do 'Financial Times'.

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