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    Lucy Kellaway

    Nota de demissão de VP financeiro do Google é um clássico

    16/03/2015 16h31

    Quando Patrick Pichette postou uma carta no Google+, na semana passada, para anunciar que estava renunciando à vice-presidência de finanças do Google para viajar como mochileiro com a mulher, o mundo inteiro celebrou. O veredicto online foi de que se tratava de um documento inspirador, de leitura obrigatória.

    Por isso, li o post, devidamente, e me senti devidamente inspirada –mas não a comprar uma mochila, e sim a declarar que, no suspeito gênero das cartas de demissão, Pichette compôs um clássico instantâneo.

    Mais que isso, ele despertou questões sobre a exposição excessiva de informações pessoais, a falsa modéstia e a duplicidade de padrões que todos exercemos quanto a trabalho e família. Recomendo que você o leia imediatamente, se ainda não o fez.

    O post começa afirmando que "depois de quase sete anos como vice-presidente de finanças, deixarei o Google para dedicar mais tempo à minha família", o que seria um bom começo, mas não é exatamente verdade, como ele deixa claro mais tarde. O texto prossegue com "eu gostaria de expor meu processo de raciocínio, porque muita gente luta para encontrar o equilíbrio entre o trabalho e a vida pessoal".

    Ele está certo, quanto a isso. Quase todo mundo enfrenta dificuldades para encontrar esse equilíbrio, mas isso acontece porque ele não existe. Pessoas diferentes enfrentam a questão de maneiras diferentes. Além disso, Pichette ganha cerca de 100 vezes o salário médio de um trabalhador dos Estados Unidos, o que significa que a vasta maioria das pessoas com as quais ele está compartilhando seu processo de raciocínio não se deixará afetar por ele, em um sentido ou no outro.

    Depois ele nos conta que sua nova vida nasceu certa manhã, no topo do Kilimanjaro: "Tamar (minha mulher) e eu estávamos não só curtindo a escalada e a visão do topo como, porque a manhã era muita clara, víamos ao longe a planície do Serengeti, lá embaixo, e com ela o apelo de todas as aventuras que a natureza podia nos oferecer na África".

    Quanto a isso, duas coisas me ocorrem. A primeira é que é bem difícil obter oxigênio suficiente, no topo de uma montanha, o que pode levar a confusão, comportamento irracional e até morte, o que faz desse um mau lugar no qual tomar grandes decisões sobre a vida.

    A segunda é que as palavras de Pichette me pareciam estranhamente familiares. Apanhei-me cantando "Africa", da banda Toto, uma das canções pops mais cafonas de todos os tempos: "Sei que preciso fazer o certo/ Da mesma forma que o Kilimanjaro sobe como o Olimpo sobre o Serengeti" etc.

    O vice-presidente de finanças do Google explica que não decidiu se demitir de imediato. Ele voltou ao trabalho, mas então lhe ocorreram três motivos para deixar o cargo.

    "Primeiro, meus filhos já saíram de casa". Isso me parece um tanto excêntrico - ele decidiu passar mais tempo com a família exatamente no momento em que sua família não está mais lá.

    Segundo, ele precisava de uma pausa, depois de trabalhar 1,5 mil semanas sem descanso como resultado de ser membro da FMIEL, a "nobre Fraternidade Mundial dos Inseguros que Excedem Limites". Só ele pode determinar se realmente pertence a essa fraternidade, se bem que, se a sua mensagem serve de guia, não há grande indício de insegurança em Pichette.

    "Amo meu trabalho (continuo amando), meus colegas, meus amigos, as oportunidades de liderar e mudar o mundo". Liderar e mudar o mundo? Não vejo muita insegurança nisso.

    O terceiro motivo é a força do casamento de Pichette, que já chegou aos 25 anos, e "as muitas lembranças excelentes que já temos juntos... Quero mais. E ela merece mais. Muito mais".

    Mesmo que não fosse ligeiramente indecente discutir o que a mulher do autor merece em uma mensagem para colegas de trabalho, fazê-lo é tentar o destino. Patrick e Tamar não passaram muito tempo em companhia um do outro nos últimos 25 anos. Vamos todos torcer que a trilha sonora de sua viagem envolva mais "Africa" do que "D.I.V.O.R.C.E.".

    "Permitam-me poupá-los do resto das verdades", ele prossegue, despertando esperanças que serão imediatamente destruídas quando ele declara que terá "uma crise de meia-idade perfeitamente bacana, repleta de felicidade e beleza", uma proposição tão espantosamente ambiciosa que desvia a atenção quanto ao resto da sentença, que termina com "... e deixaremos a porta aberta ao acaso para nossas próximas oportunidades de liderança, assim que nossa longa lista de viagens e aventuras se concluir".

    Em outras palavras, ele não está se aposentando de verdade. Vai simplesmente tirar longas férias, depois das quais estará aberto a novas ofertas de emprego.

    "Trabalhar no Google é um privilégio - nada menos que isso", conclui Pichette, agradecendo Larry, Sergey e Eric por "permitirem que eu fosse quem sou".

    Tudo isso é ótimo, mas se eu fosse acionista da companhia talvez resmungasse que não estou pagando US$ 5,2 milhões por ano a Patrick para que ele seja Patrick, mas sim para manter em ordem a estrutura de custos da companhia.

    E a história é essa. Um sujeito que passou sete anos como vice-presidente de finanças de uma das maiores empresas do planeta decide tirar longas férias com a mulher.

    É uma decisão pessoal, que pode ou não ser boa. Mas observadores externos bizarramente definiram Pichette como herói por tê-la tomado. Como comentou um sujeito, em tom de abençoada felicidade, por sob o texto de Pichette, "je suis Patrick".

    Mas a realidade é que "nous ne sommes pas Patrick", e deveríamos todos nos reservarmos o direito de fazer nossas próprias escolhas.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    lucy kellaway

    Escreveu até julho de 2017

    É editora e colunista de finanças do 'Financial Times'.

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