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    Lucy Kellaway

    Jamais esqueça o poderoso efeito de ser lembrado por alguém

    06/04/2015 14h02

    Eis um teste: procure um lápis, um pedaço de papel e desenhe o logotipo da Apple. Agora, compare o seu desenho ao verdadeiro logotipo.

    Se você é como eu, ou como 98,8% da amostra testada recentemente pelos psicólogos da Universidade da Califórnia em Los Angeles, o desenho estará errado. Quase todo mundo ou coloca a mordida do lado errado, ou desenha duas folhas em lugar de uma, ou estraga de alguma maneira a simples tarefa de reproduzir uma imagem que todos já vimos milhares de vezes.

    Não só somos incapazes de desenhar um dos mais famosos logotipos do planeta como a maioria de nós não consegue identificar o logotipo certo em meio a uma coleção de desenhos semelhantes.

    Por que isso acontece? Os pesquisadores falam de "saturação atencional" e de "amnésia por desatenção", mas acredito que a resposta seja mais simples. Não conseguimos recordar o logotipo porque não precisamos fazê-lo.

    Para mim, o logotipo da Apple faz parte da vasta coleção de coisas de que não preciso lembrar.

    E cada vez mais coisas pertencem a essa categoria. Em casa, há algumas coisas que ainda preciso lembrar, como comprar mais xampu quando o que temos está acabando, ou preencher o formulário de licença para uma viagem escolar de meu filho. Mas no trabalho posso esquecer quase tudo com segurança - excetuadas uma coisa grande e uma coisa pequena. Fora essas duas coisas, posso zerar a memória. A memória de trabalho foi permanentemente terceirizada para o computador.

    Em teoria, isso significa que uma das coisas de que preciso lembrar é a minha senha de computador, ainda que na prática o pessoal da tecnologia muitas vezes tenha me resgatado quando a esqueço. Não é preciso recordar fato algum, graças ao Google, todas as anotações de agenda agora estão disponíveis online e tudo que todas as pessoas disseram ou fizeram um dia é facilmente localizável em um e-mail arquivado em algum lugar.

    Uma possível exceção é a memória empresarial, que tende a ser armazenada em cabeças e não na nuvem, mas poucas empresas exibem demanda por isso, hoje. Hoje, as pessoas que decidem não recebem com agrado os protestos dos velhos chatos que conseguem recordar que isso ou aquilo já foi tentado um dia e não funcionou. O ontem é fonte de irritação.

    Assim, quais são as duas coisas de que você precisa se lembrar no trabalho? A coisa menor é onde você guarda seus cartões de débito e crédito e seu crachá de segurança. Tento facilitar usando o crachá em uma tira pendurada do pescoço, ainda que isso não seja uma solução completa porque às vezes tiro o crachá do cordão, me esqueço de colocá-lo de volta e preciso procurá-lo.

    A coisa maior é reconhecer os outros. É claramente vantagem lembrar os nomes dos colegas, mas porque ser incapaz de fazê-lo é bem comum, a penalidade pelo erro é trivial. O importante é lembrar rostos e detalhes incidentais sobre as pessoas.

    Recentemente fui assistir a "Para Sempre Alice", filme no qual Julianne Moore interpreta uma professora universitária que sofre de Mal de Alzheimer prematuro. Quando ela esquece uma palavra durante uma aula, isso causa um embaraço passageiro, mas ela logo faz uma piada e se recupera. Perder o rumo em uma corrida é pior, mas o verdadeiro horror acontece quando ela não consegue se lembrar da namorada do filho, a quem havia sido apresentada 15 minutos antes.

    Não é preciso sofrer do Mal de Alzheimer para esquecer um rosto, e fazê-lo no trabalho importa. Recentemente, encontrei em um evento empresarial um sujeito com quem estudei na universidade, e ele parecia saber muito sobre minha vida. Porque eu não me lembrava dele, fiquei em desvantagem e, quando ele me pediu um favor, fui apanhada em posição precária e tive de dizer sim.

    Da mesma forma, não muito tempo atrás encontrei um executivo importante com quem havia realizado uma reunião de uma hora cinco ou seis anos atrás. Quando o cumprimentei de modo caloroso, ele me olhou sem me reconhecer, certo de que nunca havíamos nos encontrado. Talvez isso signifique apenas que ele tem má memória, mas levei para o lado pessoal - como todos inevitavelmente fazemos. Ou eu tinha envelhecido a tal ponto em cinco anos que estava irreconhecível, calculei, ou havia sido enfadonha a ponto de ele nem se lembrar de mim. Nenhuma das duas coisas era boa.

    A capacidade de se lembrar de pessoas me parece uma vantagem maior que a inteligência emocional, no trabalho. A maioria das pessoas não deseja empatia no escritório, mas todo mundo gosta de ser recordado.

    Quanto mais alguém consegue recordar em detalhe o papo inconsequente de encontros passados, mais você se inclina a confiar na pessoa e gostar dela; é uma capacidade que não serve apenas aos políticos, mas pode beneficiar a todos.

    Um dia, provavelmente em breve, a tecnologia vestível executará para nós a tarefa de reconhecer rostos e de nos conectar a um banco de dados de informações pessoais. Mas quando isso acontecer, essa capacidade terá perdido o valor. O motivo para que as pessoas desejem que nos lembremos delas é que fazê-lo é difícil.

    Se o computador recorda em nosso lugar, o valor disso se torna zero. Ninguém deseja simplesmente ser lembrado. Queremos que as pessoas se lembrem de nós porque isso é um sinal de que outro ser humano nos vê como um indivíduo dotado de valor, e não como apenas mais um subordinado intercambiável.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    lucy kellaway

    Escreveu até julho de 2017

    É editora e colunista de finanças do 'Financial Times'.

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