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    Lucy Kellaway

    O processo de recrutamento empresarial está de cabeça para baixo

    13/04/2015 11h19

    No mesmo dia do mês passado, eu e minha filha nos levantamos, colocamos nossas melhores roupas e saímos para (diferentes) entrevistas de trabalho.

    Ela, que acaba de se formar, estava sendo considerada para um cargo no sopé da pirâmide de uma organização para a qual muitas outras pessoas também gostariam de trabalhar.

    Para conseguir aquela entrevista, ela teve de superar muitos obstáculos, entre os quais preencher um formulário contendo 15 páginas de questões tenebrosas como "descreva uma ocasião em que você tenha aprendido com um erro", um teste de inteligência e diversas provas escritas.

    Já eu me formei há um pouco mais de tempo, tendo concluído a universidade 35 anos atrás, e estava sendo considerada para um posto próximo do alto da hierarquia, como membro não executivo do conselho de uma companhia.

    Para chegar àquele ponto do processo de contratação, eu havia feito praticamente nada: disparei um currículo, e foi só isso.

    No dia da entrevista, minha filha chegou às 8h30 da manhã ao local de seleção, para um processo que duraria seis horas. Em contraste, minha entrevista começou às 14h e terminou antes da hora do chá.

    Para ela, o dia começou com um exercício em grupo, durante o qual todos os candidatos precisavam provar que eram ao mesmo tempo assertivos e inclusivos, seguido por uma apresentação que cada um deles tinha de fazer diante de uma audiência que propositadamente tentava atrapalhá-los.

    Por volta da hora do almoço, os candidatos foram todos reunidos e metade deles foi mandada embora sumariamente, em estilo "X-Factor", enquanto os demais passaram por nova série de entrevistas com grupos de selecionadores, provas eliminatórias e outras gracinhas do tipo.

    Meu dia de seleção, ou melhor, minha hora de seleção não envolveu quaisquer testes ou perguntas difíceis.

    Em lugar disso, fiquei acomodada em um sofá diante de um educado presidente de conselho que, longe de tentar provocar tropeços, se esforçava ao máximo para parecer amável.

    Ele me disse que não havia questão quanto à minha capacidade de desempenhar as funções do posto; o que o interessava era saber se eu me "encaixaria" bem com os demais integrantes do conselho.

    Naquela noite, comparamos observações enquanto tomávamos um vinho, minha filha fatigada e eu comparativamente lépida. Comentei que a vida parecia muito mais fácil e menos competitiva à medida que você envelhece.

    Se você consegue galgar o primeiro degrau da escada, pode continuar subindo e ninguém jamais o questionará.

    Ao que parece a experiência de busca de emprego de minha filha é perfeitamente normal para a geração dela; na BBC, a disputa por um posto de trainee em jornalismo faz conseguir uma vaga em Harvard parecer uma barbada.

    No Goldman Sachs, é ainda pior –apenas 3% dos 267 mil inscritos são contratatos.

    Para obter um emprego, os formandos precisam passar por uma sucessão de obstáculos, e são avaliados quanto ao seu QI, inteligência emocional, conhecimentos, liderança, vigor, criatividade –e tudo isso para ocupar postos subalternos nos quais nenhuma dessas qualidades será muito necessária.

    Em contraste, no nível dos conselhos, onde essas coisas realmente fazem diferença, nada é testado.

    Por que o presidente do conselho afirmou que minha capacidade de desempenhar as funções do posto era inquestionável? Ela certamente deveria ser questionada.

    Pode-se argumentar que, ao contrário dos formandos, o pessoal de postos mais altos já não é uma incógnita em termos profissionais. Essas pessoas já provaram do que são capazes. Todas têm históricos.

    Assim, o que resta a testar é essa fugaz qualidade do "encaixe", e a única maneira de fazê-lo é uma boa conversa em um sofá confortável.

    Mas não tenho assim tanta certeza disso. Não só jamais estamos certos de como alguém realmente se saiu em seu mais recente trabalho como costumamos presumir que experiência em uma dada área é válida para outra (o que frequentemente não procede).

    Isso não significa dizer que processos de avaliação são necessariamente uma boa maneira de selecionar pessoas; mas, se eles funcionam para o pessoal júnior, funcionariam ainda melhor para o pessoal sênior.

    Para um formando que será contratado como trainee, não faz muito sentido partir em uma dispendiosa busca das pessoas mais inteligentes e empregáveis, porque elas serão as primeiras a trocar de emprego.

    Seria mais inteligente distribuir os postos de entrada em uma organização de maneira mais flexível, e depois permitir que o único teste real –o desempenho da pessoa no posto– decida quem fica e quem sai.

    No caso dos postos de conselho, é preciso acertar de primeira, porque não se pode convidar pessoas para um período de experiência no conselho e ver se isso funciona.

    Felizmente, existem coisas óbvias que poderiam ser testadas previamente. O posto envolve ler balanços e pilhas de documentos –por isso seria irresponsável não verificar com antecedência se a pessoa sabe ler, fazer contas e encontrar rapidamente as agulhas certas no palheiro dos documentos recebidos pelo conselho.

    O posto também envolve se relacionar agradavelmente com os outros, ter coragem e não hesitar em expressar uma opinião –coisas que facilmente poderiam ser transformadas em um jogo ao estilo do programa "The Apprentice".

    Imagino que o motivo para que ninguém faça suas contratações assim é que os egos dos candidatos são tão grandes que eles recusariam ser testados –o que seria a melhor razão para testá-los.

    Há uma relação inversa entre o tamanho do ego e a efetividade da governança empresarial, e assim, se o processo de seleção excluir os egos mais avantajados, isso já seria um ótimo resultado.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    lucy kellaway

    Escreveu até julho de 2017

    É editora e colunista de finanças do 'Financial Times'.

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