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    Lucy Kellaway

    O horror elástico e pulsante da canção da Siemens

    16/05/2016 14h09

    Lá em cima, o céu azul não exibia uma nuvem que fosse. No chão, milhares de pessoas contemplavam um palco flanqueado por telões e sobre o qual um guindaste sustentava uma plataforma para as luzes e câmeras. A música era alta.

    Podia ser o festival de Glastonbury, se você não estivesse olhando com atenção para os espectadores, muitos dos quais usando terno e gravata. Ninguém estava dançando com a música. Estavam todos olhando rigidamente para o palco, como que congelados. Alguns poucos braços erguiam celulares para capturar o que talvez tenha sido o mais embaraçoso evento de repaginação de marca que uma grande empresa já empreendeu.

    Foi dessa maneira que a Siemens escolheu informar ao seu pessoal que a sua divisão de saúde, criada 120 anos atrás e fabricantes de coisas sensatas como aparelhos auditivos e aparelhos de ressonância magnética, agora passará a se chamar Siemens Healthineers.

    No palco, duas dúzias de dançarinos mal ensaiados, usando macacões colantes em laranja e turquesa, ondulavam ao som de uma letra exibida em larga escala nos telões: "Indo mais além.... Para o melhor e nunca sozinhos... Uma visão. Uma missão. Um foco. Um nome. Uma cultura. Um sonho. Uma equipe". A música crescia para um refrão grandioso "Nós somos, nós somos, nós somos Healthineers" [engenheiros/pioneiros da saúde].

    A canção se arrastou por quase quatro minutos, e ao final a plateia aplaudiu daquele jeito polido nascido do alívio trazido pelo fim de uma experiência horrorosa. Um vídeo caseiro do evento vem atraindo muita atenção online, com centenas de comentários de espectadores, por exemplo "é assim que se destrói uma empresa", ou "bem-vindos a um 1984, mas ainda mais brutal". Alguns comentários sugeriam que a GE, a principal rival da Siemens, estaria esfregando as mãos de alegria, porque os clientes certamente vão se recusar a comprar o equipamento médico necessário a salvar vidas de uma equipe cafona de healthineers.

    Suspeito que a Siemens vá sobreviver a esse episódio de mania de grandeza idiota. Um dos maiores mistérios do capitalismo é a maneira pela qual as empresas fazem e dizem as coisas mais cretinas sem que isso afete o progresso de seus negócios.

    Mesmo assim, o evento estabeleceu um exemplo para empresas de toda parte sobre o quanto você pode parecer tolo se ignorar três regras básicas da comunicação empresarial.

    A primeira dispõe que grandes empresas jamais devem apelar para a música. Não existe um único exemplo de uma grande empresa expressando seus valores em música sem sofrer imensa humilhação.

    Temos o exemplo daquela terrível versão de "One", do U2, pelo Bank of America, com um funcionário a caminho da calvície fingindo ser Bono. E a canção de recrutamento da Ernst & Young: "Oh happy day: Ernst & Young showed me a better way" [que dia feliz: a Ernst & Young me mostrou um caminho melhor], com contadores dançando e batendo palmas fora do tempo. No caso da KPMG, uma canção que dizia "KPMG, somos fortes como quê/ Uma equipe de poder e energia / Buscando o ouro todo dia/ Juntos preservamos/ Nossa visão de estratégia" levou a empresa a ser ridicularizada.

    Canções funcionam bem na igreja, onde as letras tendem a ser decentes e as pessoas se reúnem porque acreditam na mesma coisa. Canções pop também funcionam, desde que as pessoas que as cantam sejam jovens ou bacanas.

    Nas grandes empresas, qualquer tentativa de impor um sistema de crenças compartilhadas se torna sinistra, e o trabalhador médio não é nem jovem, nem bacana. Assim, canções devem ser evitadas a qualquer custo.
    A segunda regra é resistir a palavras-valise, o método pelo qual palavras altamente respeitadas - no caso, saúde, engenheiros e pioneiros - são recortadas e coladas para criar uma monstruosidade.

    Exemplos recentes do mercado empresarial incluem "inovalor", "sustenagilidade", "garrunidade" e "ideiação". Ocasionalmente, uma empresa consegue realizar a façanha: algumas décadas atrás, Bill Gates e Paul Allen criaram a Microsoft, uma empresa de algum sucesso, ainda que eu ouse dizer que, com esses dois à frente, ela teria florescido qualquer que fosse o nome escolhido.

    A terceira lei dispõe que afirmar que todos formam uma só equipe, e seguem um só sonho, não faz com que isso seja verdade. Só faz com que a empresa pareça estúpida.

    "Um" é a maior tendência entre as grandes empresas, no momento. "Uma Heinz". "Uma Sony". Até "Uma Microsoft". Toda empresa que deseja mostrar que não está confusa lança uma campanha usando a palavra "um".
    O que isso quer dizer? E como é que as empresas podem demonstrar tamanho entusiasmo por serem uma e ao mesmo tempo falar sem parar sobre diversidade?

    Quando a Pearson, então dona do "Financial Times", anunciou que era Uma Pearson, não entendi o motivo. E entendi menos ainda quando ela decidiu que unicidade não era razão para não colocar o jornal no mercado.
    Explicando o novo nome, o presidente-executivo da Siemens Healthineers, recentemente se pronunciou sobre "alavancar conhecimentos especializados", "soluções clínicas customizadas" e a "jornada para o sucesso", antes de chegar ao ponto. "Nosso novo nome... expressa nossa identidade como uma companhia de pessoas".

    No caso, ele se esqueceu de que pessoas, ao contrário de máquinas de ressonância magnética, têm sentimentos. Elas são capazes de sentir embaraço e alienação, e não se inclinam minimamente a sentir mais apego aos seus trabalhos depois de receber mensagens banais a 110 decibéis e assistir ao contorcionismo dos dançarinos em azul e laranja colante.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    lucy kellaway

    Escreveu até julho de 2017

    É editora e colunista de finanças do 'Financial Times'.

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