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    Lucy Kellaway

    O que o 'currículo do fracasso' revela sobre revezes em uma carreira

    23/05/2016 10h36

    Johannes Haushofer, professor assistente de psicologia na Universidade Princeton, publicou no mês passado um currículo que registra todos os fracassos profissionais de sua carreira, até hoje. Listou os cursos nos quais não foi aceito na universidade. Os empregos acadêmicos que não conseguiu. Os estudos acadêmicos que escreveu e foram rejeitados para publicação. As bolsas de pesquisa que foram concedidas a colegas mas não a ele.

    O "currículo do fracasso" resultante se tornou um sucesso no Twitter e a história foi veiculada por jornais do mundo todo. Que humildade! Que inspiração! Que coragem!, foi o veredicto. A coisa toda se provou tão popular que se tornou, na avaliação do professor Haushofer, um metafracasso —já que atraiu mais atenção do que toda a sua produção acadêmica combinada.

    Ainda que divertido, o currículo dele não me parece minimamente corajoso. Se você leciona em Princeton, listar seus fracassos não requer grande bravura. Dizer que você foi rejeitado pela Escola de Economia de Estocolmo parece mais uma revanche: vejam só o que vocês perderam. O currículo não é uma demonstração de humildade, mas de falsa humildade.

    Para demonstrar como é fácil ser blasé sobre o fracasso quando você obteve algum sucesso, na semana passada sentei-me à mesa alegremente para preparar o meu currículo pessoal de rejeições. Tive de me esforçar, porque minha memória me fez o favor de esquecer a maior parte dos fracassos que tive nos últimos 40 anos, mas, pelo menos até onde me lembro, a lista é a seguinte:

    Em 1977, não fui aceita pelas universidades de Essex, York e Sussex para o curso de graduação em Economia.

    Em 1981, o Boston Consulting Group, BP, Bain, Shell e o Tesouro britânico me rejeitaram como trainee. Dois anos mais tarde, não consegui emprego no "Times", "Telegraph" e no "Evening Standard". Por volta de 1985, fui recusada pela "Economist", e em 1987 não obtive uma bolsa de pesquisa Laurence Stern do "Washington Post".

    Em 2004 e 2010, dois romances diferentes foram rejeitados por numerosas editoras de diversos países. Em 2015, fui entrevistada para possíveis postos nos conselhos da ITV, British Land e Belmond —e recusada em todos os casos. E de 1985 para cá, deixei de conquistar tantos prêmios de jornalismo que listá-los ocuparia metade deste jornal.

    Ao estudar meu currículo de fracassos, a coisa mais interessante é o período muito longo em que pareço não ter fracassado em coisa alguma. De cerca de 1991 a cerca de 2004, praticamente não tive rejeições. Mas longe de ser a parte mais bem sucedida de minha carreira, esses foram meus anos mais lentos. Eu estava cuidando de filhos pequenos, tentando manter minha posição no "Financial Times" e em geral simplesmente batalhando para levar as coisas em frente.

    Isso demonstra que, se o seu currículo de fracassos é muito curto, isso em si é um fracasso - você não está tentando tanto quanto deveria. Se, por outro lado, ele for muito longo, pode ser que você seja simplesmente um caso perdido. Ou que tenha ambições elevadas demais. Para cada um de nós, existe uma razão perfeita entre rejeições e aceitação —provavelmente de cerca de quatro para uma; se sua proporção for mais baixa que isso, é provável que você não esteja se colocando à prova como deveria.

    A próxima coisa que me ocorre é que nem todas as rejeições são iguais. Algumas machucam muito (como quando um rival detestado conquistou um prêmio que eu queria muito ganhar) e outras não doem nem um pouco. Fracassos seguidos por sucessos deixam de incomodar muito rápido.

    Já que você só pode buscar um diploma ou manter um emprego de cada vez, aqueles que você não obteve se tornam irrelevantes. Não conseguir emprego na "Economist" me incomodou até que eu conseguisse emprego no "Financial Times"; e depois disso, deixou totalmente de fazê-lo.

    De fato, a única rejeição que ainda dói depois de quase meio século nem mesmo consta da lista. Eu tinha 10 anos e não consegui nem mesmo um papel coadjuvante na peça "The Boy Friend", que minha turma de escola encenou no final do curso primário.

    Quando perguntei aos meus colegas sobre seus currículos de fracassos, muitos reportaram coisa parecida. Nenhum deles parece ter se incomodado com variadas rejeições pela BBC ou Secretaria do Exterior, mas rejeições sofridas na escola —muitas vezes no mundo do esporte— ainda incomodam. Meu marido sempre dizia que não conseguir vaga no time titular de rúgbi em Eton foi a coisa mais dolorosa que aconteceu a ele, e o fez rejeitar a classe dominante pelos 20 anos seguintes.

    O currículo de fracassos apresentado secamente nada diz sobre a dor, e não oferece explicações. O professor Haushofer propõe a reconfortante ideia de que a maioria dos fracassos acontece apenas por má sorte, porque o mundo é estocástico, candidaturas são apostas, e comitês de seleção muitas vezes cometem erros.

    Não estou certa de que essa seja a maneira certa de encarar a questão. Quando recordo meus fracassos, lembro-me de ter criado histórias consoladoras que os explicassem; eu me dizia que o processo todo era arbitrário, ou que eu tinha falado mais do que deveria, ou que era simplesmente a vez de alguma outra pessoa.

    Mas ao contemplar meu currículo de fracassos hoje, uma explicação mais plausível me ocorre. Fracassei, em quase todos os casos, simplesmente porque havia outra pessoa lá que apresentou candidatura mais forte ou se saiu melhor na entrevista.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    lucy kellaway

    Escreveu até julho de 2017

    É editora e colunista de finanças do 'Financial Times'.

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