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    Lucy Kellaway

    Precisamos de mais produtos inteligentes, porque somos estúpidos

    13/06/2016 10h50

    Vinte anos atrás, fui informada de que não se não cuidasse melhor dos meus dentes, logo os perderia. Desde então, passei a escová-lo, a usar fio dental e a recorrer a três tamanhos diferentes de escovas interdentais —o que deve me tornar a cliente ideal para a mais inteligente de todas as escovas de dentes inteligentes, a Oral B Genius 9000.

    Para usar essa escova, você precisa afixar seu celular ao espelho do banheiro, no nível da boca, para que a câmera fique de olho em sua escovação enquanto você empreende sua "jornada de 28 dias pela placa bacteriana".

    Enquanto eu escovo, a tela se acende para me revelar em que parte de minha boca estou trabalhando. Isso poderia ser inteligente —se eu já não soubesse a resposta. A escova cronometra meu tempo de escovação (algo que minha escova elétrica já faz eficientemente), e ao fazê-lo me distrai quanto à tarefa ao me informar (incorretamente) como está o tempo lá fora e o que está acontecendo no planeta.

    "Impressionante", a escova comentou quando acabei. A experiência pode mesmo ter sido agradável, é claro, mas já sou adulta e não preciso de congratulações por ter escovado os dentes.

    Os dados de escovação foram devidamente registrados, para permitir comparação com relação a futuras sessões de limpeza dos dentes —fazendo da rotina diária de higiene bucal uma divertida competição contra mim mesma. Nunca mais vou usar o app. Os cinco minutos diários que passo cuidando dos dentes são um momento de relativa calma, um oásis no qual estou protegida contra telefones. Vou mantê-los desse jeito.

    Mas essa escova de dentes inteligente quase certamente será um sucesso, como foram as versões precedentes do produto. De acordo com a Procter & Gamble, 250 mil pessoas usam seu app Oral B, e evidentemente acreditam que há uma relação entre usar o Bluetooth e ter dentes brancos.

    E não são apenas as escovas de dentes inteligentes que vêm conquistando as pessoas. Uma amiga me conta deliciada de que forma o Elvie, um aparelho de solo para promover contrações pélvicas que se define como "o seu personal trainer", mudou sua vida.

    Você faz os exercícios e o app que acompanha o aparelho informa como você está se saindo e permite que compita on-line contra os amigos. Produtos como as pulseiras Fitbit e Jawbone já transformaram metade da população do planeta em chatos que competem até ao caminhar. A Oral B e o Elvie levam o processo um passo adiante.

    Menos indelicado mas não menos inexplicável é o pregador de roupas inteligente, possivelmente a mais idiota das tecnologias inteligentes que vi até o momento. O Peggy, que está sendo testado na Austrália pela Unilever, é um pregador de roupas plástico que contém um termômetro e um higrômetro capazes de enviar mensagens ao seu celular dizendo "oi, Lucy, há nuvens de chuva a caminho, melhor secar as roupas amanhã".

    A companhia está fingindo heroicamente que o Peggy permitirá que pais passem mais tempo com seus filhos. Isso não faz sentido algum, já que a principal coisa que separa pais e filhos não é pendurar roupas em dias de chuva, mas passar o dia inteiro olhando para o smartphone.

    Superficialmente mais promissores são os guarda-chuvas inteligentes e as carteiras inteligentes que impedem que seus donos as percam ao lembrá-los a cada vez que esses objetos estejam a uma distância superior à estipulada do smartphone. Isso parece terrivelmente incômodo —sempre que você deixar o guarda-chuva ao lado da porta da frente e decidir se acomodar no sofá, seu celular enviará um aviso de guarda-chuva fora de alcance.

    O mais desagradável de todos esses "avanços" é o absorvente higiênico inteligente. Trata-se de um absorvente higiênico comum afixado a um cabo que se conecta a um sensor preso à calcinha. A cada vez que o sensor determinar que é hora de trocar o absorvente, ele enviará um alerta ao seu celular.

    Não consigo imaginar por que uma pessoa desejaria ver seu corpo conectado dessa maneira e, de qualquer jeito, não há necessidade. As mulheres já dispõem de dois métodos de saber quando é hora de trocar de absorvente: olhar seus relógios ou ouvir o que dizem seus corpos.

    Quanto mais aprendo sobre a Internet das coisas, mais acredito que caímos em um planeta de faz de conta. Acabo de assistir a um vídeo bacana da NotiFly, uma "interface invisível de usuário", que informará quando sua braguilha está aberta. Eu juraria que o vídeo era piada. Mas os créditos no final mencionavam a consultoria Accenture Interactive, que não é conhecida por seu senso de humor.

    O estonteante crescimento da tecnologia inteligente é tanto fácil de compreender quanto um mistério. A oferta cada vez maior não é surpresa. Os fabricantes produzem essas coisas porque podem produzi-las. A tecnologia existe. É relativamente barata. E graças ao Kickstarter e outros recursos semelhantes, não há escassez de otários dispostos a financiar esse tipo de projeto.

    Já a demanda por esses produtos continua a ser um mistério. O fato de que pessoas estejam dispostas a pagar mais do que poderiam por não soluções para não problemas é a melhor prova da irracionalidade dos consumidores que o mercado produziu até o momento.

    Se desejamos engenhocas inteligentes como essas, devemos ser burros. E não só isso: a tecnologia inteligente está nos tornando mais burros. Não precisamos mais nos lembrar de fechar a braguilha, ou de olhar para o céu antes de pendurar roupas no varal, e se o nosso tema favorito de conversa é quem andou mais, caminhou mais ou contraiu mais a pélvis, nossos cérebros em breve terão necessidade muito maior de exercício do que os nossos músculos pélvicos.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    lucy kellaway

    Escreveu até julho de 2017

    É editora e colunista de finanças do 'Financial Times'.

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