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    Lucy Kellaway

    Praga da criatividade compulsória pode estar se extinguindo

    12/09/2016 12h39

    Jean-Pierre Muller/AFP
    Criatividade compulsória pode estar se extinguindo
    Criatividade compulsória pode estar se extinguindo

    Não sou criativa. E o mesmo se aplica à maioria dos meus colegas. O "Financial Times" emprega pessoas inteligentes que sabem como identificar assuntos para reportagens, escrevê-las elegantemente e oferecer aos leitores a combinação certa de familiaridade e surpresa.

    Experiência, conhecimento, prática, julgamento, técnica e inteligência influenciam o processo. Capacidade de escrever também. E de pensar. Criatividade é quase irrelevante. E não digo isso para insultar o "Financial Times", mas para elogiá-lo.

    Por duas décadas, o pessoal dos negócios vem falando asneiras sobre o que significa ser criativo. A interpretação predominante é de que mais criatividade é melhor do que menos criatividade —e "criatividade demais" é uma ideia inconcebível. No LinkedIn, existem cerca de dois milhões de pessoas com o termo "criação" ou "criatividade" na descrição de seu cargo.

    No site de empregos Indeed, há 32 mil vagas especificando que é preciso criatividade só em Londres, ante apenas 2.700 que requerem polidez e míseras 300 que pedem cooperação. É intrigante, se você levar em conta que polidez e cooperação são traços vitais para todos os empregos que conheço, enquanto a maioria das empresas têm uso zero para verdadeira criatividade.

    A praga da criatividade se espalhou tanto que chegou até um departamento onde no passado era vista como tabu —a contabilidade. A AstraZeneca, que está em busca de alguém para planejar seus fluxos de caixa, se vangloria no anúncio de emprego sobre uma atmosfera na qual as pessoas são "recompensadas por suas ideias e criatividade".

    Os especialistas em gestão jogam lenha na fogueira por meio de pesquisas cada vez mais idiotas. A mais cretina foi publicada pela "Harvard Business Review" e recomenda que as empresas deem aos seus empregados títulos absurdos como "imagineiros" para torná-los mais criativos. O mais preocupante é que o artigo destaca como especialmente louvável a descrição "artistas do sanduíche", para o pessoal da rede Subway que coloca peito de peru e queijo no meio de duas fatias de pão.

    Não só é condescendente esperar que esses azarados trabalhadores se sintam entusiasmados por causa de um nome assim estúpido como criatividade claramente não é aquilo que a empresa está buscando. Se você é uma máquina mundial que produz 4.800 sanduíches Subway por minuto, criatividade na linha de produção não é recomendado.

    Na semana passada, encontrei o primeiro sinal de que o culto à criatividade pode ter chegado ao seu pico e começado a decair. O site Fast Company publicou um artigo intitulado "como ser menos criativo no trabalho, e por que você às vezes deveria seguir essa recomendação". O argumento era o de que excesso de criatividade pode tornar o trabalhador irritante aos olhos do chefe, e que muitas vezes a coisa inteligente a fazer, para uma empresa, é esquecer ideias novas e seguir fazendo o que faz.

    Existem duas coisas extraordinárias na recomendação. Para começar, ela está certa. Segundo, foi publicada por uma organização que fez mais do que qualquer outra para promover essa tendência insensata. A dúbia missão da Fast Company é inspirar "uma nova safra de líderes de pensamento criativos e inovadores que inventem ativamente o futuro dos negócios".

    Pode ser que os trabalhadores comuns tenham começado a se irritar, depois de duas décadas de criatividade compulsória. Na semana passada, a Kantar Media, do grupo WPP, convidou todo o seu pessoal a se reunir em salas de diferentes continentes e brincar com blocos Lego, construindo versões pessoais de um "mundo extraordinário".

    Será que eles achavam que adultos fingindo ser crianças e brincando com bloquinhos coloridos deflagrariam uma imensa onda de criatividade? Bem, nem todos os participantes concordariam. Um funcionário me mandou um e-mail depois daquele dia deprimente, e como tema escreveu "a coisa mais absurda que já aconteceu no meu lugar de trabalho".

    O dicionário Merriam-Webster define criatividade como "a capacidade de fazer coisas novas ou pensar em ideias novas". Não restam muitas ideias novas, e a maioria das que restam são ou muito ruins ou tão novas que as pessoas comuns não conseguem reconhecê-las como boas. Van Gogh, afinal, só vendeu um quadro em vida.

    Há raríssimas pessoas capazes de ideias genuinamente novas. Conheço apenas duas: um é poeta e o outro é inventor. Os dois fazem as coisas completamente ao seu modo. Nenhum deles tem muito dinheiro; nenhum duraria cinco minutos em um emprego empresarial —odiariam seu trabalho, e seu trabalho os odiaria.

    Para sobreviver, empresas precisam mudar, de vez em quando. Precisam fazer as coisas de maneira ligeiramente diferente da maneira pela qual eram feitas antes - mas para isso não necessitam de criatividade.

    Precisam de pessoas com inteligência e julgamento, para selecionar as variações corretas de ideias existentes. Mais que isso, precisam de pessoas com a determinação necessária a testar essas ideias, alterá-las da maneira necessária e transformá-las em vendas.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    lucy kellaway

    Escreveu até julho de 2017

    É editora e colunista de finanças do 'Financial Times'.

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