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    Lucy Kellaway

    Códigos de conduta das empresas violam princípios do bom senso

    27/03/2017 11h46

    Christophe Ena/AP Photo
    Códigos de conduta das empresas violam o bom senso
    Códigos de conduta das empresas violam o bom senso

    Violei o código de conduta adotado por meu empregador. E o violei não só de uma, mas de quatro maneiras diferentes, uma das quais envolve uma mentira escancarada.

    O normal seria manter o silêncio sobre isso, mas escolhi me autodenunciar em parte porque acredito estar em boa companhia e em parte porque acredito que o verdadeiro delito não foi cometido por mim, mas pelos códigos de conduta —que violam os princípios do bom senso, da motivação humana e da escrita ágil.

    Códigos de conduta são uma coisa assustadora. Charlotte Hogg, que ajudou a redigir o do Banco da Inglaterra e que trabalha como consultora para minha organização assistencial, acabou tropeçando no código de conduta de sua instituição este mês e se viu forçada a renunciar ao seu posto como vice-presidente do banco central britânico. Ao ver o que aconteceu com ela, decidi fazer algo que jamais havia feito: ler com cuidado o código de conduta do meu empregador.

    A primeira coisa que o código de conduta do "Financial Times" exige é que seus empregados "ajam de maneira profissional, honesta e ética", o que é bom, ainda que um tanto genérico. Mas já no segundo item encontrei uma bobagem: "Conheça bem as informações contidas neste código", o texto estipula. Em minha defesa, eu tentei ler o código em diversas ocasiões, nos últimos anos, mas leio devagar, e nove páginas de texto chatíssimo são um pouco demais.

    Isso não me torna uma exceção. Sou como a maioria dos seres humanos, que tendem a não se deixar atrair pelas letrinhas miúdas nos contratos de planos de saúde e seguros.

    Na semana passada, perguntei a todo mundo com quem conversei se eles haviam lido os códigos de conduta de seus empregadores. A maioria respondeu que não, ou me olhou com expressão de culpa e disse tê-los folheado. Algumas pessoas afirmaram ter lido os códigos de suas organizações, mas quando lhes perguntei sobre o conteúdo, se limitaram a responder que "ah, você sabe, o de sempre".

    Isso significa que a cada ano, milhões de escravos do salário —e eu sou um deles— cometem ainda outra violação e mentem ao ticar aquele quadradinho por meio do qual afirmam ter lido, compreendido e aceitado o código de conduta de suas empresas, quando na verdade não fizeram qualquer dessas coisas.

    A violação seguinte envolve minha obrigação de denunciar qualquer colega que não esteja cumprindo o código. Sei com toda certeza que um determinado jornalista do "Financial Times" não leu o código na íntegra, tampouco, o que quer dizer que estou descumprindo seus termos novamente por não denunciá-lo.

    Mas entregar uma pessoa por algo tão ínfimo interferiria com o meu princípio ético pessoal de não dedurar um amigo, especialmente um amigo que é um excelente e respeitado jornalista. O que devo fazer, nesse caso? Com relação a isso, e a todos os outros espinhosos dilemas da vida real, o código de conduta em nada ajuda.

    Quanto ao resto do código, o que ele tem a dizer é perfeitamente sensato, de modo um tanto genérico. Mas temo que minha mesa não cumpra totalmente o regulamento de combate a incêndios, e o texto me informa que tenho a obrigação de "ler, compreender e cumprir nossas Normas de Tesouraria, Normas de Viagem e Despesas, e Normas de Retenção e Destruição de Dados" —o que deprimiria qualquer pessoa.

    No entanto, em comparação com a maioria dos demais códigos de conduta, o do "Financial Times" é notavelmente sucinto e preciso. No meu primeiro empregador, o JPMorgan, o novo código tem 50 páginas e começa com uma foto de Jamie Dillon ostentando um sorriso angelical e um olhar distante. Há outras fotos, de mulheres felizes e pessoas negras, e uma que mostra funcionários do banco jogando baldes de água uns nos outros.

    Como essa última imagem se relaciona à norma de que os funcionários do JPMorgan devem tratar uns aos outros com dignidade o texto não explica. O documento é uma mistura interminável de coisas importantes e triviais - de regras severas sobre lavagem de dinheiro a vagas instruções sobre como ser um bom cidadão do planeta. O que é uma bobagem em um código de conduta. O que isso quer dizer? E desde quando isso é assunto do banco?

    Eu preferiria um código que viesse sem fotos, sem retórica sobre valores, e sem carta sentimental do presidente-executivo, mas com uma lista simples de mandamentos claros. Um início razoável seria: Não faça coisa alguma de ilegal. Não faça qualquer coisa que fracassaria no teste da "Private Eye" —ou seja, que causaria espanto se uma notícia sobre o assunto fosse publicada nas páginas da revista satírica. Não faça qualquer coisa que teria vergonha de contar aos colegas.

    O problema com isso é que não satisfaz os objetivos reais de um código de conduta —parte exercício de relações públicas, parte desculpa para demitir qualquer pessoa cujo chefe considere que as normas da empresa foram violadas. Às vezes, como o Banco da Inglaterra descobriu, a armadilha apanha a pessoa errada.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    lucy kellaway

    Escreveu até julho de 2017

    É editora e colunista de finanças do 'Financial Times'.

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