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    Lucy Kellaway

    Uma aula sobre como detectar enganação em números e palavras

    10/04/2017 11h11

    Jim Young/REUTERS
    Segundo Lucy Kellaway, documento de branding produzido sobre logotipo da Pepsi em 2008 é enganação
    Segundo Lucy Kellaway, documento de branding produzido sobre logotipo da Pepsi em 2008 é enganação

    Os alunos da Universidade de Washington desde o mês passado podem se inscrever em um curso chamado "detectando enganação na era do big data". Já faz duas décadas que, semana sim e outra também, trabalho detectando enganação para este jornal, e por isso fiquei encantada quando meu passatempo favorito encontrou espaço na academia.

    Embora o curso se limite a ensinar como detectar enganação numérica, há igual necessidade de aulas sobre como detectar falsidade nas palavras, especialmente as palavras usadas nos negócios. Abaixo, ofereço um plano de curso para remediar essa lacuna.

    Tudo começa pela definição: enganação em geral quer dizer retórica vazia, quase sempre reconhecível pelo exagero e pela pretensão de ser o que não é. Olhos aguçados perceberão de imediato a dificuldade de aplicar esse conceito à vida empresarial —quase tudo nela se enquadra à descrição.

    Antes mesmo de entrar em minha sala, tropecei sobre uma placa amarela que dizia "cuidado, piso molhado" —enganação porque em geral o piso não está molhado e, mesmo que estivesse, a imagem de alguém levando um tombo espetacular só por causa disso é um tremendo exagero.

    A primeira regra para detectar enganação empresarial é não fazê-lo com muita assiduidade, ou você perderá o juízo. Aprendi a ignorar 95% dos casos que encontro e, quanto aos demais, me faço duas perguntas: qual é a qualidade da enganação, e que estragos ela pode causar?

    Analisei dezenas de enganações que encontrei nos últimos dias e escolhi três que vale a pena mencionar. A primeira é um documento de branding produzido sobre um novo logotipo da Pepsi em 2008, e ressuscitado na semana passada no Twitter.

    Com diagramas que comparam os campos magnéticos da Terra aos "campos de energia da Pepsi" e um texto que diz "o DNA da Pepsi encontra sua origem na dinâmica das oscilações de perímetro", o documento é evidentemente enganação completa, da mais alta qualidade. Mas quanto à segunda questão —os estragos que ele pode ter causado—, a resposta é negativa. A Pepsi mudou seu logotipo e continuou a vender sua água com açúcar marrom em todo o planeta sem encontrar problemas.

    Mesmo assim, esse tipo de enganação merece ser denunciado não só por sua qualidade excepcional como porque fazê-lo pode encorajar aqueles que a perpetram a passar por um momento sombrio de contemplação, e pensar sobre o que exatamente eles estão fazendo com suas vidas.

    O segundo exemplo é um documento da Deliveroo sobre a linguagem preferencial para descrever os coitados que pedalam pela cidade carregando nas costas as fragrantes refeições alheias. O memorando proíbe o uso de "empregados", substituindo-o por "fornecedores independentes", e proíbe o uso do termo "pagamento", optando em lugar disso por "faturas" ou "integrando".

    Quanto ao aspecto qualidade, a enganação em questão não é das melhores. "Fornecedor independente" e "fatura" são inócuos, e "integrando", embora lamentável pelo gerúndio, se tornou tão comum que nem faz sentido protestar. Mas quanto ao estrago potencial, o memorando da Deliveroo é forte.

    A empresa sabe que se seus entregadores usassem palavras comuns como "empregado" e "contratado", eles poderiam cometer o erro de imaginar que têm o direito a benefícios usuais como férias e licença médica - algo que a Deliveroo teimosamente nega ao seu pessoal.

    O terceiro exemplo vem de Jim Norton, que ocupa um cargo cujo título já é um exemplo de maravilhosa enganação, o de vice-presidente de negócios e presidente de receita na Condé Nast.

    Na semana passada, ele delineou a sua nova estratégia para toda a equipe da empresa em um memorando que começava pela palavra "equipe" e seguia adiante com uma enxurrada de enganação empresarial sobre planos de jogo, jornadas e amplas gamas de soluções diferenciadas, O texto enganava sobre demissões, descrevendo-as como "decisões de pessoal muito difíceis", e terminava definindo o novo plano como "Condé Nast One".

    O uso da palavra "one" [um ou una] por empresas se tornou uma forma comum de enganação —um clichê e uma mentira, dados os diferentes interesses ocultos que existem dentro de uma organização. Se Norton trabalhasse no ramo automobilístico ou em finanças, eu poderia perdoar.

    Mas a Condé Nast publica as revistas "Vanity Fair" e "New Yorker", cujos padrões editoriais são tão severos que um dos editores da última escreveu um livro inteiro sobre o posicionamento correto de uma vírgula.

    Norton pode continuar falando sobre a "herança de um jornalismo de qualidade", mas se ele tivesse pedido que seu pessoal revisasse o lema que propõe —"transicionaremos esse negócio juntos"—, eles certamente teriam dito que "transição" não deve ser usado como verbo, e que ainda que possa sê-lo [em inglês], a frase resultante parece monstruosa. Ele não pediu ajuda; o que seu pessoal fez, em lugar disso, foi ler o memorando, perceber o tamanho da asneira e me encaminhar o texto.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    lucy kellaway

    Escreveu até julho de 2017

    É editora e colunista de finanças do 'Financial Times'.

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