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    Lucy Kellaway

    A robô Amy quer meu emprego, mas ela não é páreo para mim

    22/05/2017 14h32

    David Mcnew/AFP
    A Lynx robot toy by UBTECH Robotics dances at ShowStoppers during the 2017 Consumer Electronic Show (CES) in Las Vegas, Nevada on January 5, 2017. / AFP PHOTO / DAVID MCNEW
    Um robô produzido pela Ubtech Robotics dança durante feira em Las Vegas, nos EUA

    Na semana passada, o "Financial Times" deu parte do meu emprego a um robô. Há alguns anos produzo uma versão de minha coluna em forma de podcast, mas agora tenho uma concorrente difícil: a robô Experimental Amy.

    Ela trabalha por preço muito mais baixo que eu, aprende rápido e sempre obedece as ordens rigorosamente.

    Do lado negativo, ouso dizer que ela é uma colega de trabalho menos simpática do que eu –mas ninguém é perfeito.

    Ser substituído por um robô é o pior pesadelo de todo trabalhador, e quando descobri que Amy estava invadindo meu território fiquei compreensivelmente perturbada. Mas assim que superei a indignação, me sentei para ouvir o trabalho dela e comecei a me sentir melhor.

    Sei que a carreira de Amy só está começando, mas pelo menos por enquanto ela não é páreo para mim. Na verdade, pelo menos em minha opinião, que admito ser parcial, ela é absolutamente inútil. Se você não acredita, vá ao site do "Financial Times" e ouça as duas versões.

    É justo dizer que Amy tem algumas vantagens. Para começar, sua voz é excelente.

    Quando comecei a gravar versões em áudio das minhas colunas, uma década atrás, um leitor escreveu para se queixar do meu "tom nasal, metálico, do estuário", que o havia levado a desistir de ouvir o podcast imediatamente. A voz de Amy, em contraste, tem um timbre agradavelmente grave e é suave como o veludo.

    Sua segunda vantagem é que seu trabalho sai praticamente de graça. Amy é parte de um novo serviço da Amazon que converte texto em fala e que custa praticamente nada –ao menos em comparação com o salário que o "Financial Times" me paga.

    Ainda mais impressionante é sua velocidade. Menos de dois segundos depois de receber meu texto escrito, ela já havia fornecido uma versão falada da coluna. O que quer dizer que enquanto eu pigarreava e me preparava para ler que "na segunda-feira passada, o Finan...", ela já tinha terminado.

    Na versão Amy do trabalho, não há confusão e ela o executa sem ajuda. Em contraste, minhas gravações requerem um produtor, o uso do estúdio, a necessidade de uma troca de e-mails para marcar um horário conveniente para ambos, e alguns minutos de conversa ociosa quando nos encontramos. É preciso montar equipamento e depois editar a gravação, para remover todos os meus tropeços. O processo consome meia hora do tempo do produtor e cerca de 15 minutos do meu tempo.

    Isso seria um argumento decisivo se o produto de Amy fosse pelo menos meio decente –mas não é. Ela coloca os pontos finais nos lugares errados. Cola palavras que deveriam ficar separadas. E seu domínio da sintaxe é limitado.

    Ouvir o trabalho de Amy não é como ouvir alguém que não fala inglês lendo meu texto em voz alta, mas ouvir alguém sem cérebro, sem coração, e sem qualquer senso de humor. De fato, a leitura dela é tão ruim que nem mesmo entendo a coluna na versão que ela apresenta –e isso é dizer muito, já que fui eu que a escrevi.

    Amy aprende muito rápido. Dois anos atrás, os bots de voz disponíveis no mercado de massa falavam como Stephen Hawking. A cada dia, os algoritmos de aprendizado de Amy a ajudam a melhorar. Seus problemas de tempo serão resolvidos. Sua entonação vai melhorar. Ela vai conseguir oferecer um simulacro de emoção, e não tropeçará em algumas piadas.

    Mas Amy jamais será capaz de ler com compreensão genuína. Amy jamais saberá quando fazer uma pausa e quando adotar um tom sarcástico. Amy jamais praticará a ironia. Ela sempre vai ler errado.

    Quanto a esse último predicado, ela não está sozinha. Cometo erros ao ler. Às vezes surge um ruído esquisito no fundo. Às vezes leio rápido demais, ou forço demais a ênfase. Mas imagino que os leitores não devam tratar as nossas deficiências da mesma maneira.

    Quando um ser humano erra, a audiência entende por quê. Muitas vezes, um erro faz com que nos sintamos mais próximos da pessoa que o cometeu. Mas quando um robô comete um erro, não simpatizamos com seu problema e o mais provável é que percamos a fé na empreitada toda.

    No fim, não fiquei ressentida com Amy por estar a ponto de roubar meu emprego. Mas não gosto dela, porque lê minhas colunas do jeito que lê. Submetidas ao tratamento que Amy oferece, elas me parecem as coisas mais impenetráveis e sem graça que já foram escritas.

    Amy talvez consiga se sair bem como locutora de previsões para navegação, ou anunciando resultados de futebol. Em breve, ela será boa o bastante para ler qualquer coisa que seja previsível. Mas o ponto quanto a uma coluna de jornal decente é que, se ela for previsível, não é boa o bastante.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    lucy kellaway

    Escreveu até julho de 2017

    É editora e colunista de finanças do 'Financial Times'.

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