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    Lucy Kellaway

    Economista é demitido por exigir que equipe escrevesse melhor

    05/06/2017 16h00

    Zanone Fraissat - 16.set.12/Folhapress
    Paul Romer liderava uma cruzada para tornar mais clara a linguagem do Banco Mundial
    Paul Romer liderava uma cruzada para tornar mais clara a linguagem do Banco Mundial

    A história foi uma das mais tristes que li em muito tempo. O economista-chefe do Banco Mundial ordenou à sua equipe que escrevesse com mais clareza, os interrompia quando suas falas em apresentações pareciam intermináveis, e insistia para que todos os relatórios fossem curtos e lúcidos.

    Em lugar de ser saudado por sua bravura, Paul Romer foi punido por heresia, e perdeu suas funções executivas. Ele havia assumido o posto em outubro de 2016 –até então, ele atuava como professor na Universidade de Nova York. Suas áreas de interesse são desenvolvimento urbano, mercados emergentes e inovação.

    A história dele parece a versão empresarial do martírio de Joana d'Arc.

    Só discordo de Romer em uma coisa. Entre suas ordens estava uma cota para o uso da palavra "e"; ele ditou que o teor do "e" em um relatório oficial deveria ser de no máximo 2,6% do conteúdo.

    É meio estranho perseguir a mais corriqueira das conjunções, que tem a vantagem de ser útil, clara e curta, quando existem tantas outras palavras no mundo –alavancar, entregar, jornada, diálogo, plataforma, aprendizado, robusto e mais outras mil– que não merecem nenhum dos três adjetivos.

    Mas quando o Laboratório de Literatura da Universidade Stanford publicou um estudo em 2015 analisando os relatórios do Banco Mundial, o pobre "e" levou uma sova. Os autores apontaram que seu uso havia praticamente dobrado nos últimos 70 anos, e citavam zombeteiramente trechos em que substantivos feiosos e não relacionados eram encadeados por meio de sequências de conjunções.

    Mas será que o "e", tão curto, merece mesmo a culpa? Na semana passada, mergulhei em textos, começando por uma imersão nas colunas de Martin Wolf, que escreve mais claramente do que qualquer outro economista que eu conheça. E em sua coluna mais recente, lá estava: um total admiravelmente modesto de 2,5% de "es". Em seguida, estudei uma coluna de Janan Ganesh, escritor cuja prosa é amplamente admirada, e ele se saiu ainda melhor, com apenas 2% de "es".

    Depois disso, decidi alargar minha busca, baixei a íntegra de "Rei Lear", e descobri que Shakespeare usou apenas 19 "es" a cada 1.000 palavras. Se você considerar que muitos desses "es" são usados para direções cenográficas –"entram Kent e Gloucester"–, o total líquido é ainda mais baixo.

    Eu estava a ponto de concluir que Romer talvez tivesse razão em suas instruções, mas decidi analisar os meus textos e descobri que na coluna da semana passada meu total foi de vergonhosos 30 "es" a cada 1.000 palavras –para desespero de Romer.

    Em um esforço final para provar que ele estava errado, examinei "Orgulho e Preconceito" –um romance extremamente elegante, pela mais elegante escritora da língua inglesa. Baixei um capítulo aleatório e me senti aliviada: no texto de Jane Austen, polpudos 3,8% das palavras eram "es".

    No exato momento em que eu estava realizando essa busca, no palco do Festival Literário de Hay um antigo vice-presidente do Banco da Inglaterra estava dizendo à audiência que a fim de conseguir que seus economistas escrevessem inteligivelmente, o banco central britânico havia recomendado que eles estudassem o trabalho do Dr. Seuss.

    Quando descobri a recomendação, fui correndo a "O Gatola da Cartola" e, para minha alegria, havia "es" espalhados por toda parte –eles respondiam por 4,6% do texto.

    O que isso prova é que "es" só são problema se resultarem em um texto longo demais ou confuso demais. O Dr. Seuss se safa do uso abundante do vocábulo porque seu texto é muito enxuto. Em apenas 1.620 palavras, ele conta uma história mais surpreendente e memorável do que qualquer relatório de banco poderia.

    Mas mesmo que os economistas fossem forçados a usar menos palavras, o problema não seria resolvido. Longo quase sempre quer dizer ruim, mas curto não necessariamente significa bom.

    Um dos trechos mais crus de escrita que li na semana passada foi uma carta de Alex Cruz, presidente da British Airways, aos membros do Executive Club da companhia de aviação, depois que um problema de informática levou 75 mil passageiros a perderem viagens.

    A carta continha apenas 421 palavras, e começava de maneira muito simples: "Eu quis contatá-los pessoalmente para pedir desculpas".

    Ou seja, ele estava mentindo desde a primeira palavra, já que nada é mais impessoal do que um e-mail robotizado enviado em massa de um endereço genérico.

    Além de ser simples e curto, um bom texto precisa ser verdadeiro. Contemplei o "Rei Lear" que tinha baixado para o meu computador e li os versos finais, uma fala de Albany: "Digamos apenas aquilo que sentimos, e não aquilo que deveríamos dizer".

    Mas nem isso ajudará os economistas. O impulso de escrever asneiras pomposas é profundo demais para que uma rápida imersão em Shakespeare ou no Dr. Seuss o cure.

    Qualquer economista dirá que a melhor maneira de mudar comportamentos é mudar incentivos. Isso significa promover aqueles que escrevem bem, e não punir um dirigente que tentou forçar seus colegas a escrever textos que outras pessoas concebivelmente poderiam querer ler.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    lucy kellaway

    Escreveu até julho de 2017

    É editora e colunista de finanças do 'Financial Times'.

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