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    Lucy Kellaway

    Não dê atenção aos pudicos: palavrões são gloriosos

    26/06/2017 11h56

    Fiz uma palestra na TEDx, organizada pela London Business School, algumas semanas atrás. Não acho que me tenha me saído muito bem —os ensaios e preparações extensos que a TED exige tiveram o efeito de fazer com que eu parecesse uma versão cafona e travada de mim mesma. Quando saí sorrateiramente do palco, um aluno de MBA veio me procurar, empolgado.

    "Foi excelente!", ele me disse. Eu me fiz de desentendida, mas ele prosseguiu: "Não acredito que você disse aquela palavra!"

    Fiquei intrigada, porque havia acabado de passar 18 minutos falando de maneira edificante sobre meus motivos para abandonar o jornalismo e me tornar professora de matemática. Então ele explicou: "Você disse bullshit [um termo ligeiramente chulo que significa 'mentira'] em uma palestra da TED!"

    Trocamos um olhar, os dois atônitos. Ele estava chocado por eu ter usado a palavra. Eu estava chocada por ele estar chocado.

    Para mim, "bullshit" não é palavrão: é meu arroz com feijão. É o tema sobre o qual escrevi por décadas. Uso a palavra porque não há um substituto igualmente eficiente. Suponho que eu poderia dizer "bobagem", mas seria um eufemismo. E todo eufemismo é bullshit (que literalmente significa merda).

    Mas recentemente percebi que há algo de estranho acontecendo. O mundo empresarial, apesar de produzir bullshit em volumes cada vez maiores, vem se mostrando cada vez mais pudico quanto ao seu uso. Quando escrevi uma coluna que ensinava a detectar bullshit, um leitor comentou: "Objeto ao uso de BS (por extenso) em um jornal respeitado como o 'Financial Times'. É possível defender seus argumentos sem recorrer à linguagem escatológica".

    Número surpreendentemente alto de leitores do "Financial Times" expressaram apoio a esse comentário.

    Da mesma forma, quando Travis Kalanick, fundador da Uber, bateu mais um prego em seu caixão ao ser apanhado por uma câmera gritando com um motorista do aplicativo, as manchetes eram todas sobre os palavrões que ele usou. Kalanick repetiu pelo menos três vezes a temível palavra "bullshit", mas seu verdadeiro erro foi se recusar a ouvir sobre as dificuldades financeiras do motorista, optando por gritar do modo mais irritante, com o dedo em riste.

    Minha história favorita sobre pudicícia exagerada vem do Goldman Sachs. Durante a crise financeira, um e-mail interno do banco vazou, e nele um dos títulos lastreados por hipotecas que a instituição tinha lançado era definido como "um negócio de merda". A resposta do banco? Normas proibindo o uso de palavrões, para dali por diante proteger os funcionários de formas de expressão que poderiam incomodá-los.

    As empresas estão se tornando mais pudicas em um momento no qual crescem as indicações de que na verdade deveríamos encorajar o uso de termos chulos no trabalho. Acabo de receber uma cópia para resenha de "Swearing is Good For You: The Science of Bad Language", um livro de Emma Byrne no qual ela cataloga de maneira impressionante como o uso de palavrões, além de estar associado à inteligência, nos ajuda a enfrentar a dor e a nos aproximarmos dos outros, e aumenta nossa inclinação a confiar uns nos outros.

    É uma leitura gloriosa e inspiradora, mas não acho que o livro vá ao cerne da questão. Minha pesquisa pessoal demonstra como o uso de palavrões pode ajudar na divulgação de sua mensagem, e para que você consiga o que quer. Acabo de fazer uma busca do termo "fuck" na minha caixa de e-mail do "Financial Times", onde tenho 41 mil mensagens arquivadas, e obtive 146 retornos. A maioria das mensagens contendo o termo vinha de amigos e colegas, em mensagens bem humoradas. Nos poucos exemplos de uso do termo em mensagens de desconhecidos, o palavrão em geral vinha a calhar. Uma delas pedia minha ajuda para alguma coisa, e começava por "os seus podcasts são mesmo foda". O uso do palavrão me fez parar para pensar, e me levou a considerar que a lisonja escancarada da mensagem fosse sincera, o que me levou a responder sim ao pedido de ajuda.

    Em outra das mensagens, um leitor me encaminhou um e-mail de um consultor da McKinley no qual o remetente se despedia com "melhores". "Usar 'melhores' como despedida em uma mensagem é foda", escreveu o leitor. Uma vez mais, prestei atenção, ri e guardei a mensagem no meu armário de bullshit, com o objetivo de premiá-la.

    Caso alguém pudico esteja lendo, devo concluir com algo óbvio. Contexto é tudo. Linguagem chula só é recomendada entre amigos e entre pessoas que saibam se comunicar. Jamais deveria ser usada pelos rudes e os zangados.

    Entre as mensagens de minha coleção, havia um e-mail de um homem que desaprovava algo que escrevi. A torrente de obscenidades que ele enviou merecia ser apagada sem leitura, mas eu a guardei como prova de que a linguagem chula ainda pode machucar e repelir —quando é usada exatamente com essa intenção.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    lucy kellaway

    Escreveu até julho de 2017

    É editora e colunista de finanças do 'Financial Times'.

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