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    Luís Francisco Carvalho Filho

    Escravos de agora

    01/02/2014 03h00

    A escravidão divide o Supremo Tribunal Federal. Parece estranho, mas é verdade.

    O Código Penal, em 1940, definiu como crime "reduzir alguém a condição análoga à de escravo", com pena severa, de dois a oito anos de reclusão.

    A exposição de motivos fixa o alvo (quem suprime a liberdade de alguém, sujeitando-o ao seu completo e discricionário poder) e justifica: "Não é desconhecida sua prática entre nós, notadamente em certos pontos remotos do 'hinterland'".

    Não havia controvérsia. Reduzir significa subjugar. O tipo está na seção do Código que cuida dos crimes contra a liberdade pessoal, como sequestro e cárcere privado.

    Em 2003, o Congresso reformou o texto e introduziu expressões alternativas como "trabalho forçado", "jornada exaustiva" e "condições degradantes de trabalho". O que a definição original tinha de exata, a nova tem de confusa.

    Governo e Ministério Público do Trabalho criaram equipes móveis que "resgatam" trabalhadores vítimas de condições degradantes, como se escravos fossem, independentemente da supressão da liberdade.

    Depois de "profícua discussão", procuradores do Trabalho baixaram "orientações" que tornam "irrelevante" a vontade do trabalhador. Mesmo no caso de contrato de trabalho que pode ser espontaneamente rompido pelo empregado. E apelidaram as próprias orientações de "marco jurídico-institucional". Além da ação penal, maus patrões são lançados em lista negra que restringe crédito, contratos com poder público etc.

    De fato, as fronteiras internas do Brasil expandiram-se estrondosamente nos últimos 70 anos. Não deveria ser assim, mas, por diversas razões, há focos de desrespeito crônico à lei trabalhista. Nada contra reprimir, interditar e multar empresas e fazendeiros que ignoram a legislação. O problema está no desvirtuamento conceitual.

    Em 2012, dois ministros do STF, oriundos da Justiça do Trabalho, polarizaram o debate.

    Para Marco Aurélio, a supressão da liberdade é essencial para a caracterização do delito. Recebeu o apoio dos ministros mais antigos do STF, mas perdeu a votação (6 a 4).

    A tese vitoriosa, de Rosa Weber, sustenta o contrário. Para ela, a "escravidão moderna" é mais "sutil" e o cerceamento da liberdade pode decorrer de constrangimento econômico.

    Como dois ministros que seguiram a maioria se aposentaram e como Joaquim Barbosa estava ausente no dia da votação, a controvérsia permanece em aberto.
    A historiografia distingue "escravidão moderna" da "escravidão clássica". Moderna é a escravidão do negro africano que envergonha o Brasil e perdurou até 1888. A "escravidão" de Rosa Weber deveria receber outro nome.

    Mas por que mudar a essência do conceito de escravidão? Por que não tratar trabalho degradante como trabalho degradante?

    A falta de clareza em torno do que significa condição degradante pode gerar abuso punitivo. Vítimas, ainda que voluntárias, de falta de banheiro na roça, boia-fria, alojamentos ou transporte precários e excesso de horas extras devem ser tratadas como escravos?

    Segundo o governo federal pelo menos 38.522 trabalhadores foram heroicamente "resgatados" entre 2003 e 2012. E com alarde. Trabalho escravo é notícia sempre. Resta saber se todos os escravos de agora são escravos de verdade.

    lfcarvalhofilho@uol.com.br

    luís francisco carvalho filho

    É advogado criminal. Foi presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos instituída pela Lei 9.140/95. Escreve aos sábados,
    a cada duas semanas.

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