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    Luís Francisco Carvalho Filho

    Notícia de estupro

    11/04/2015 02h00

    O site da "Rolling Stone" apresenta aos seus leitores a anatomia de um erro jornalístico de grande repercussão e que fere a credibilidade da revista de variedades culturais –originalmente "underground", mas que, com o tempo, aderiu aos padrões publicitários da mídia norte-americana.

    A edição de novembro de 2014 publicou, sob o título "A rape on campus" ("Um estupro no campus"), história até então desconhecida de violência sexual sofrida por uma jovem de 18 anos, identificada como Jackie, na Universidade de Virginia, em setembro de 2012.

    A "Rolling Stone" pôs em xeque o ambiente universitário, estimulando uma caça às bruxas. Sua página virtual com a notícia do estupro recebeu 2,7 milhões de visitas. Após quatro meses de investigação, a polícia concluiu inexistir "base substantiva" para os fatos narrados na reportagem.

    Assim que publicado, o texto despertou incômodos. O "Washington Post" e a "Slate" logo encontraram inconsistências no relato. A repórter declarou, depois, ter perdido confiança na sua fonte e a própria "Rolling Stone" convocou equipe da Escola de Jornalismo de Columbia para fazer auditoria independente no trabalho jornalístico, com acesso a profissionais, gravações e notas, que resulta no "doloroso" relatório divulgado em 5 de abril.

    Não se acusa a autora de inventar. Aparecem erros como uso inadequado de pseudônimos, falta de checagem de informações recebidas da suposta vítima, não procurar a versão dos suspeitos e ineficácia da supervisão editorial.

    Muito além de eventuais processos e do constrangimento causado para pessoas e instituições envolvidas, como uma "fraternity" (espécie de "república", sólida e tradicional, que oferece para seus membros, entre outras vantagens, moradia durante os estudos em universidades norte-americanas) que teria sediado o ataque a Jackie, o episódio reforça o costumeiro sentimento de desconfiança em relação à palavra da mulher em situação de vulnerabilidade.

    Se determinação e coragem da vítima são importantes para punição de culpados e desestímulo à violência sexual, o machismo ainda se entranha em delegacias, no Judiciário. A "falha" da revista dissemina o preconceito de que mulheres mentem ao revelar agressões, muito embora o relatório de Columbia reconheça, também, registros oficiais de acusações falsas de estupro.

    Há uma epidemia que não se restringe aos EUA, tendo como pano de fundo narrativas de trote e baladas ou lugares inseguros. Quem buscar na internet "estupro no campus" encontrará notícia de diversos casos em universidades públicas brasileiras, o que deve gerar políticas de prevenção.

    Crimes sem testemunha, com presença exclusiva de vítima e ofensor, ou ofensores, como em muitos casos de estupro, podem demandar inteligência e apuração complexa, sofisticada. A palavra de um e de outro devem se submeter a rigoroso confronto. Detalhes podem apontar para a verdade.

    O contraditório, o choque de versões e o olhar equidistante são valores essenciais para uma boa justiça. A atenção crítica a toda e qualquer fonte de informação a ser publicada –seja réu, suspeito, vítima, testemunha, advogado, promotor, juiz, governante ou documento– é peça chave para o bom jornalismo.

    lfcarvalhofilho@uol.com.br

    luís francisco carvalho filho

    É advogado criminal. Foi presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos instituída pela Lei 9.140/95. Escreve aos sábados,
    a cada duas semanas.

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