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    Luís Francisco Carvalho Filho

    Os mortos têm olhos

    09/05/2015 02h00

    De norte a sul, há uma crise de segurança na América.

    A letalidade da polícia nos EUA –bastante reduzida se comparada à de outros países do continente– põe na berlinda o arranjo poderoso, às vezes informal, às vezes baseado em normas e jurisprudência, que tem livrado de punição eventuais abusos de poder.

    Lá, o viés racista da repressão policial desperta fúria.

    Em Baltimore, a reação oficial foi vigorosa e momentaneamente eficaz, acalmando a revolta. O indiciamento dos policiais é decisivo para o julgamento. Mas condenações não estão garantidas e, ainda que aconteçam, podem parecer brandas para quem busca vingar a morte do inocente Freddie Gray.

    A determinação da jovem e negra promotora cria expectativas de veredito severo, proporcional ao resultado. Punir faz parte da prevenção. Mas como se comportarão os jurados? Devem ser negros ou brancos? Irão se render ao clamor popular? E se prevalecer o entendimento de que erros de execução no combate ao crime têm uma "imunidade" que qualquer ataque contra policiais nunca teria?

    A fogueira pode reacender se a Justiça não se revelar "justa".

    Tão próximo e tão distante dos EUA, o México, ao mesmo tempo próspero e pobre, vive o contrário. Falta aparato policial.

    Como mostra a repórter Sylvia Colombo ("Ilustríssima", 3/5), o Estado se ausenta em pelo menos quatro regiões do país e, para proteger moradores de maus-tratos e ameaças do crime organizado (produtor de heroína e exportador de drogas para os EUA), milícias particulares assumem a função de distribuir segurança e direitos.

    Não há regra, não há mecanismo institucional de controle e financiamento. É a subversão total da normalidade política, típica de guerra civil, quando se dissolve o monopólio da violência.

    No Rio de Janeiro, também próspero e pobre, o fenômeno da bala perdida e a letalidade policial extrema sugerem um cenário de praça de guerra. Diferentemente do México, agentes do Estado estão presentes, mas com armas na mão, atirando demais. E o Exército quer deixar os lugares que ocupa desde a Copa porque se sente tolhido, impedido de invadir residências, ocupar imóveis: prefere estar no Haiti.

    Os excessos atingem seres humanos comuns e corroem a credibilidade de governantes. A imprensa conta o que vê, testemunhas criam coragem de falar, as crises se sucedem e tudo se repete. O governo carioca se movimenta agora para ampliar, com tecnologia, a capacidade de vigiar a ação de policiais que sobem o morro. Câmeras digitais e GPS são capazes de inibir agressões e produzir provas. Mas é suficiente?

    Ninguém aguenta mais esse arremedo de paz. O problema é de abordagem, assim como em Baltimore, mas com grau de intensidade muito maior. Faltam aqui agentes desarmados.

    A explicação confiante do militante da "autodefensa" mexicana ajuda a entender a gravidade do que acontece em economias importantes da América: "Os mortos têm olhos, você não sabia?"

    Por isso, no México, o vácuo de poder é preenchido pela investigação privada de autoridade "ad hoc", com interrogatórios, prisões e castigo. Por isso, negros vão para as ruas em Baltimore expor sua ira. Por isso, é estranha a indiferença aos abusos que, no Brasil, parece infinita.

    luís francisco carvalho filho

    É advogado criminal. Foi presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos instituída pela Lei 9.140/95. Escreve aos sábados,
    a cada duas semanas.

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