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    Luís Francisco Carvalho Filho

    Propina e ideologia

    12/09/2015 02h00

    "Kids for cash" ("crianças por dinheiro") é a designação jornalística de um escândalo que abalou a credibilidade da Justiça norte-americana.

    Mark Ciavarella, juiz do condado de Luzerne, Pensilvânia, foi condenado em 2011 a 28 anos de prisão por um rosário de delitos: corrupção, lavagem de dinheiro, fraude fiscal.

    Enriqueceu à custa de jovens que mandava para estabelecimentos correcionais privados, construídos sob sua inspiração, com o sugestivo nome "Child Care" (algo como "Cuidado Infantil"). Juntamente com o juiz presidente do condado, Michael Conahan, recebeu mais de US$ 2 milhões dos investidores a título de comissão.

    Festejado pelo discurso e pela prática de endurecimento penal, foi eleito juiz pelo voto popular em 1995 para um mandato de dez anos e reeleito em 2005. Sob o impacto do massacre de Columbine (em 1999, no Colorado, dois jovens mataram 12 alunos e um professor a tiros), Ciavarella implantaria política de tolerância zero para adolescentes. Michael Moore propagandeou o caso em "Capitalismo: Uma História de Amor" (2009).

    Se o propósito era prevenir violência –banir arma, droga, agressão e assédio– do ambiente escolar, conflitos menores, que poderiam ser resolvidos pela direção da escola, também iam parar no juizado. Encarceramento de meninas e meninos com apoio de pais e mestres: um jeito de se livrar de "alunos maus".

    Os réus eram submetidos a veredicto quase instantâneo, depois de, sob pressão, renunciarem ao direito de ter advogado. Em 54% dos casos faltou defesa, o que não chamava a atenção porque, na verdade, o severo juiz internava todos, indiscriminadamente.

    A Suprema Corte dos EUA decidiu no ano passado nem analisar seu derradeiro recurso. Por ironia, a mais recente cartada de Ciavarella é tentar anular a condenação por se considerar indefeso, apesar do prestígio dos profissionais que atuaram em seu favor.

    O documentário "Kids for Cash" (2014), direção de Robert May, está no Netflix. Destaca o sofrimento e o trauma dos atingidos e a complexidade do tratamento da delinquência juvenil: "crianças não são adultos pequenos", têm a região cerebral que regula a tomada de decisões e a própria noção de risco ainda em processo de desenvolvimento.

    O condado de Luzerne é região de pobreza branca, e o racismo, aparentemente, não era parte da motivação de Ciavarella. Com população de 318 mil habitantes, a maioria é de brancos (92,3% para 4,6% de afro-americanos). Lá, o drama repressivo não era só de negros.

    O documentário tem a virtude de difundir a versão de Ciavarella, que sempre negou a troca (prendia por prender, não por dinheiro), confessando só o recebimento da comissão, como intermediação comercial antiética, e a ocultação dos valores: "Não sou tão mau quanto falam".

    Muito além da promiscuidade entre empresários e magistrados, episódio que fere a política de privatização de prisões, fica um sentimento incômodo: caso Ciavarella exercitasse o mesmo rigor punitivo, encarcerando milhares de jovens por motivos banais, mas sem o benefício financeiro, seria lembrado apenas como justiceiro travestido de juiz. Não estaria preso.

    Se propina é mal que atormenta, a ideologia também pode ser.

    lfcarvalhofilho@uol.com.br

    luís francisco carvalho filho

    É advogado criminal. Foi presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos instituída pela Lei 9.140/95. Escreve aos sábados,
    a cada duas semanas.

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