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    Luís Francisco Carvalho Filho

    Sobre homens e bichos

    02/01/2016 02h00

    A Conferência do clima em Paris; o encontro de Lisboa, "O desconhecido, a 100 anos de hoje"; e a inauguração do Museu do Amanhã no Rio, eventos de dezembro e voltados para o futuro, sugerem uma pergunta incômoda: como será a relação entre homens e bichos no século 22?

    Para se proteger e para se alimentar, o vínculo sempre foi de dominação: experimentação, exploração e entretenimento. Matar animais para comer a carne faz parte da condição humana, tem legitimação bíblica, e o futuro, ao que parece, não caminha para o vegetarianismo. Ainda dependemos de primatas para pesquisas científicas e queremos um meio de erradicar, por exemplo, o Aedes aegypti, mosquito transmissor do vírus da dengue.

    O ataque a uma baleia é capaz de gerar indignação, mas não se fala (a não ser pelos efeitos colaterais em seres humanos ou para o ambiente) contra o uso de substâncias para eliminar colônias inteiras de ratos, pombos ou cupins que infestam as cidades.

    A chave da diferenciação é a senciência -sensibilidade física e emocional, como dor e sofrimento. Quem presenciou o sacrifício de uma rês sabe o que acontece. Por alguma razão, animais de grande porte, principalmente mamíferos, contam com uma simpatia humana que não alcança invertebrados ou peixes, aparentemente insensíveis. Quem nunca esmagou uma barata?

    Steven Pinker, em "Os Anjos Bons da Nossa Natureza" (Companhia das Letras, 2013), lembra que uma das reformas notáveis da humanidade é a prevenção da crueldade contra animais. Se a evolução é impressionante, alguns limites parecem intransponíveis.

    Códigos de ética regem a condição de vida de animais utilizados em laboratórios, leis penais punem maus tratos, como a briga de galo e a farra do boi, os circos sobrevivem só com malabaristas e palhaços, espetáculos com golfinhos adestrados perdem interesse. Dada a imensidão dos oceanos e a proibição internacional da caça, cresce a população de baleias jubarte, mas o tigre de Sumatra, pela agressividade e falta de espaço, está destinado ao cativeiro.

    É crime caçar ou aprisionar animais silvestres ou maltratar os domésticos. Mas permite-se o manejo e o comércio de carne e subprodutos de jacaré e tartaruga. O "abate humanitário" do gado bovino está ligado a razões morais, mas também a interesses econômicos: o bife macio.

    Cuidamos bem de cães e gatos, mas um ato tão severo como a castração é tido como humanitário e solidário: a Prefeitura de São Paulo oferece o serviço gratuitamente. Cavalgamos, apartamos filhotes e engaiolamos aves.

    Exercício de ficção científica, é possível imaginar um admirável mundo novo, sem zoológicos e aquários (as crianças com acesso cinematográfico e interativo às espécies para compreender seus instintos, ouvir os ruídos, sentir o cheiro, a textura da pele), sem caçadores, eugenia, charretes e artefatos de couro ou osso, com controle orgânico de pragas, ecossistemas equilibrados, e, para a satisfação de todos, uma indústria capaz de fabricar com sabor, aparência e valor nutricional rabo e barriga de porco, picanha e a parte gorda do atum -a partir da revolução genética e não dos matadouros.

    Até lá, é conviver com o bem-vindo trato humanitário e os seus eufemismos.

    lfcarvalhofilho@uol.com.br

    luís francisco carvalho filho

    É advogado criminal. Foi presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos instituída pela Lei 9.140/95. Escreve aos sábados,
    a cada duas semanas.

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