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    Luís Francisco Carvalho Filho

    O livro de Hitler

    13/02/2016 02h00

    A Justiça do Rio de Janeiro proibiu "Minha Luta", de Adolf Hitler. É um livro tosco. Escrito na juventude (1925), tem centenas de passagens racistas e antissemitas. Constrói a base ideológica do Holocausto.

    Está disponível na internet e em bibliotecas: a sentença é inócua. Até o fim da Segunda Guerra circularam 13 milhões de exemplares, quando os direitos autorais foram para o Estado alemão da Baviera, que jamais autorizaria novas edições.

    No Brasil, saiu em 1935 com pompa e circunstância e foi proibido em 1939. Tentativas de publicação, aqui e em vários países, sempre encontraram repulsa política e institucional pelo trauma da guerra, mas, fonte obrigatória para estudos sobre Hitler, é de fácil acesso.

    O documento, autobiográfico e militante, caiu em domínio público depois de 70 anos da morte do autor. Editoras interessadas no lançamento correm o risco de multa de R$ 5 mil por exemplar divulgado ou vendido em descumprimento da decisão, além de inquérito para apurar crime de racismo, com prisão de até cinco anos para a propaganda nazista.

    O decreto de busca e apreensão (a lei prevê destruição dos exemplares depois de condenação definitiva) baseia-se em precedente isolado do STF de 2003 -o caso do editor nazista Siegfried Ellwanger.

    A partir de 2009, quando revogou a Lei de Imprensa, o Supremo fixa princípios jurisprudenciais em direção oposta, entre eles o de que "não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, inclusive a procedente do Poder Judiciário". Em 2015, rejeitou a "censura prévia particular" ao liberar biografias não autorizadas: "O recolhimento de obras é censura judicial".

    Mas, para o juiz carioca, "a tutela que melhor se coaduna com a expressão da palavra é a que evita a ocorrência do dano". É uma tentativa pueril de "evitar a disseminação do livro com ideias contrárias aos direitos humanos".

    O que melhor se coaduna com a expressão da palavra é ausência de tutela. O livro de Hitler faz parte da história. Se a intenção do editor não é propaganda nazista, se há demanda por quem tem curiosidade acadêmica ou diletante, não há razão para veto, mesmo existindo fanáticos.

    O antissemitismo não é criação de Hitler. A frase pinçada de "Mein Kampf", "lutando contra o judaísmo, estou realizando a obra de Deus", poderia ter sido dita por autoridade católica na época do Santo Ofício. Nem por isso alguém ousaria proibir "O Manual dos Inquisidores",

    de Nicolau Emérico (1320-99), com regras para o tormento espiritual e físico dos perseguidos.

    Seria aceitável suprimir da biografia de Getúlio Vargas a entrega, para a Gestapo, da judia comunista alemã Olga Benario, mulher de Prestes? A controvérsia em torno de suposto antissemitismo de Gilberto Freyre, em "Casa-Grande & Senzala", justificaria interferência judicial? O que fazer com os escritos que inspiraram as monstruosidades soviéticas? O "Minimanual do Guerrilheiro Urbano", de Marighella, seria banido por apologia de terrorismo? Manifestações racistas de Monteiro Lobato já rondam os tribunais.

    Hitler será sempre o príncipe-demônio: o livro não o redime. A censura, além de inútil, gera desconforto pelos efeitos colaterais e multiplicadores.

    lfcarvalhofilho@uol.com.br

    luís francisco carvalho filho

    É advogado criminal. Foi presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos instituída pela Lei 9.140/95. Escreve aos sábados,
    a cada duas semanas.

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