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    Luís Francisco Carvalho Filho

    O paradoxo americano

    27/02/2016 02h00

    Apesar do modelo democrático que irradia influências, do invejável sistema de proteção constitucional, da supremacia da lei e do ativismo de entidades da sociedade civil empenhadas em monitorar violações, os Estados Unidos têm passivo bastante incômodo em matéria de direitos humanos.

    Está entre os países que mais executam prisioneiros, na companhia desagradável de China, Irã, Arábia Saudita e Iraque. O número declinou nos últimos anos (sete Estados aboliram a pena de morte desde 2007), mas em 2015 foram eliminados 28 réus, sete já em 2016 (lá o ano começa antes do Carnaval).

    É a maior população carcerária do mundo, mais de 2,2 milhões de detentos. São 6,8 milhões de pessoas sob vigilância, submetidas aos rigores do sistema correcional, que abrange (sob ameaça concreta de prisão) quem está com a pena ou o processo criminal suspensos.

    Em pleno século 21, o sistema judicial encarcera sem necessidade quem não é perigoso, inclusive adolescentes, e ainda é marcado pela contaminação racista. A partir do 11 de setembro, a ameaça terrorista fez ruir princípios essenciais como a privacidade e a integridade física ou psicológica de suspeitos.

    Mesmo enfraquecido no campo político, por falta de apoio do Congresso, Obama chama a atenção para as feridas norte-americanas.

    Derramou lágrimas ao reclamar da venda indiscriminada de armas, o que acentua a potencialidade de homicídios e massacres. Combateu preconceitos religiosos e raciais. Sugeriu a revisão dos procedimentos de execução, invariavelmente cruéis. Defendeu a revisão da draconiana estratégia de repressão às drogas. Comutou penas aparentemente excessivas. É o primeiro presidente da história a percorrer, sem paletó e de mangas arregaçadas, os corredores de uma penitenciária federal (Oklahoma, 2015). Além de manifestar preocupação com o futuro de jovens infratores, mostrou perplexidade diante de outra estatística comparativa:: "Nossa taxa de presos é quatro vezes mais alta que a da China".

    Em 2014, reconheceu, meio envergonhado e timidamente, a prática de tortura em extremistas islâmicos ("Cometemos certos erros", os agentes atuavam sob "extrema pressão"), antecipando-se ao constrangedor relatório do Senado que confirmaria técnicas de interrogatório nada recomendáveis: afogamentos, privação do sono e "alimentação retal".

    Barack Obama admite que a prática da tortura afeta os "valores" da América, mas não estimula a punição dos profissionais da CIA envolvidos: opera para o esquecimento dos abusos. E seu governo acusa implacavelmente de violação de segredo de Estado quem revela ações ilegais dos órgãos de inteligência, como Edward Snowden, que escancarou detalhes do sistema de vigilância global da NSA (Agência de Segurança Nacional), ou John Kiriakou, o primeiro a admitir os maus tratos de prisioneiros.

    O último movimento do xadrez presidencial é o anúncio, nesta semana, de um plano para fechar a controvertida prisão de Guantánamo, em Cuba -promessa eleitoral de 2008 engavetada.

    O homem mais poderoso do planeta mexe no vespeiro. Produz atos simbólicos em favor do equilíbrio entre segurança e liberdade, o que não é pouca coisa, mas parece incapaz de implementar mudanças reais.

    lfcarvalhofilho@uol.com.br

    luís francisco carvalho filho

    É advogado criminal. Foi presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos instituída pela Lei 9.140/95. Escreve aos sábados,
    a cada duas semanas.

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