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    Luís Francisco Carvalho Filho

    Sobre corrupção

    18/06/2016 02h00

    Um dos documentos interessantes que "A Ditadura Acabada" (volume que encerra a série de Elio Gaspari sobre o regime militar) descreve é a ata da 53ª sessão do Conselho de Segurança Nacional, realizada em junho de 1978. A reunião discute o projeto de emenda para a "normalização política" do país apresentado pelo presidente Ernesto Geisel.

    Além da revogação do AI-5, símbolo perfeito do estado de exceção, mas mantendo-se a intangibilidade das normas editadas sob sua vigência, a proposta criava salvaguardas para a contenção de distúrbios.

    A ata, classificada como documento secreto, faz parte de acervo do Arquivo Nacional digitalizado em 2009. Ajuda a explicar o cauteloso processo de abertura política e mostra um curioso embate retórico sobre corrupção.

    O Ministro do Exército estranha a retirada da corrupção dos motivos autorizadores do decreto do estado de sítio. A corrupção, de fato, foi ingrediente de sucessivas crises, os mares de lama (os da ditadura são lembrados pelo verso "tenebrosas transações", de Chico Buarque), mas o austero presidente Geisel sustenta a mudança afirmando que o fenômeno não tem grande relevância institucional, é "próprio da natureza humana".

    Desvios deveriam ser combatidos "tenazmente", mas, por mais grave que fossem seus efeitos ou proporções, não seriam capazes de atingir a "integridade" ou a "independência" do país. É um "mal universal", existe na França, na Alemanha, nos Estados Unidos, explica Geisel: o governo pode se "armar" contra a corrupção, mas não se justificam medidas drásticas, típicas do estado de sítio (suspensão de garantias individuais e liberdades), para tentar extirpá-la.

    É desconcertante, depois de 38 anos, ver revelado o caráter sistêmico da corrupção.

    O Brasil tentou fechar o cerco contra corruptos aprovando leis para a transparência governamental, aderindo a tratados internacionais, punindo lavagem de dinheiro e crime organizado, regulamentando a delação. Em 2003, as penas do Código Penal ficaram mais severas. Em 2013, lei definiu a leniência e a responsabilidade das pessoas jurídicas por atos contra a administração pública.

    Mesmo se "armando" de instrumentos legislativos, denúncias de desvios estão no centro dos acontecimentos e hoje comprometem a imagem dos dois governos, o da presidente zumbi Dilma Rousseff e o do presidente interino Michel Temer.

    A lei penal não parece ser a solução. Uma reforma política que barateie as eleições e crie cláusulas de barreira para partidos políticos, sim, pode ajudar, assim como é importante assegurar o funcionamento do regime de pesos e contrapesos, de fiscalização generalizada.

    Imprensa livre, oposição política, investigadores independentes, punição rápida, direito de defesa e legalidade estrita são condições essenciais para o combate das epidemias de delitos e abusos.

    Polícia, Ministério Público e Judiciário devem ter vida republicana, seus projetos e suas ações merecem atenção, crítica e controle. Paradoxalmente, desde 2015, para proteção do sigilo de sua "capacidade investigativa", as polícias estão dispensadas de licitação e de divulgar contratos.

    Um dos riscos dos tempos de repressão é perder o controle dos agentes oficiais. Não vale a pena.

    luís francisco carvalho filho

    É advogado criminal. Foi presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos instituída pela Lei 9.140/95. Escreve aos sábados,
    a cada duas semanas.

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