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    Luís Francisco Carvalho Filho

    Voltamos aos tempos da escravidão, quando ferro reprimia desobediência

    17/06/2017 02h00

    Reprodução
    Jovem tem testa tatuada após ser acusado de roubo em São Bernardo do Campo, na Grande SP
    Jovem tem testa tatuada após ser acusado de roubo em São Bernardo do Campo, na Grande SP

    Ao tatuarem a testa de um adolescente com a inscrição "eu sou ladrão e vacilão", em São Bernardo do Campo, depois da tentativa de furto de uma bicicleta, o país foi remetido para os tempos da escravidão, quando a marca de ferro quente era utilizada para reprimir a desobediência, ou, mais remoto ainda, para um sistema medieval de controle.

    Na falta de registros escritos e para identificar o ladrão que mudava de nome ou de lugar, costumava-se marcar o seu rosto com a letra "F", símbolo da forca. Em 1612, a Lei da Reformação da Justiça determinou que, em Portugal, a marca se deslocasse para os ombros do condenado: assim o sinal da infâmia era oculto pelas vestes. Se quisesse, a pessoa poderia se "emendar".

    É uma longa trajetória até o surgimento dos boletins de vida pregressa e dos bancos de dados informatizados que permitem o agravamento das penas no caso de reincidência e maus antecedentes.

    Além da violência física, da tortura propriamente dita, o surpreendente gesto de vingança privada no ABC teve o significado de alertar para o perigo que o rapaz supostamente representaria, servindo também para cobri-lo de perpétua vergonha. Por isso, a tentativa de destruir sua face.

    Machista, inadequada e extemporânea: é o que se pode dizer da sentença que "indenizou" Fernanda Young por ataques sofridos na internet. Para fixar e reduzir o valor pecuniário da condenação, o juiz levou em conta não os parâmetros normais de aferição do dano moral, mas o fato de a vítima ter posado nua e ter, na percepção do julgador, uma "reputação elástica".

    Ao declará-la mais suscetível que outras ao desrespeito, ao assédio e à ofensa, a Justiça paulista fez reviver o superado dogma da "mulher honesta". A expressão fazia parte da definição de crimes sexuais do Código Penal e dele foi expurgada em 2009, um legado da causa feminista.

    Mas a mulher ainda é desmerecida pelos seus hábitos, pelo seu comportamento e pela imagem ideal e subjetiva dos outros.

    Com negros é a mesma coisa. Em pleno século 21, estão mais sujeitos ao preconceito, à desconfiança, à revista policial, à prisão, ao assassinato. As estatísticas são desconcertantes.

    O Atlas da Violência, recentemente divulgado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Aplicada), com dados do Ministério da Saúde, informa que a possibilidade de um negro ser assassinado é 23,5% maior que a de pessoas de outra raça. A taxa de homicídios (por 100 mil habitantes de negros) subiu mais de 18% entre 2005 e 2015 enquanto a mortalidade de não negros teve redução de 12,2%. A taxa de homicídios de mulheres negras aumentou 22% no mesmo período.

    Segundo relatório da Defensoria Pública do Rio, um preso branco tem 30% a mais de chance que um negro de ser libertado na audiência judicial de custódia realizada logo após a prisão em flagrante. A maioria da população carcerária (mais de 60%) é formada por negros e pardos.

    Para onde se olha brilha o viés racista. Aqui, nos Estados Unidos, na Europa, no Oriente.

    A aparência é a parcela visível de uma pessoa, de uma coisa, de uma instituição. Se muitas vezes é capaz de revelar com precisão a própria realidade, pode também mascará-la e deformá-la. Além de patrocinar injustiças.

    luís francisco carvalho filho

    É advogado criminal. Foi presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos instituída pela Lei 9.140/95. Escreve aos sábados,
    a cada duas semanas.

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